Uma das
idéias de Freud que me parecem mais subversivas, no sentido de desestabilizar
discursos ideológicos tanto à esquerda quanto à direita, é a de que a origem
dos ideais mais elevados e nobres da cultura, quanto as ações mais abjetas e
reprováveis é a mesma, a saber, os conteúdos inconscientes, que são fundamento
de toda a subjetividade. Essa idéia contém um potencial crítico de todo
discurso mais supostamente estruturado em direção a um otimismo dialético de
ultrapassagem das vicissitudes desiderativas em direção a um patamar cognitivo
e cultural elevado, bem como de uma perspectiva por assim dizer derrotista, em
que o sofrimento, a miséria e as relações de poder calcadas na violência são
vistas como intrínsecas à natureza humana, de modo a darem suporte a uma
postura resignada, bem como pragmática.
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Hyeronimus Bosch |
Se essa
idéia de Freud está certa, consequências podem ser tiradas em diversos âmbitos
de crítica cultural, desde princípios epistemológicos mais gerais, até a
consideração de projetos políticos mais específicos. Nesse panorama, a dimensão
mais significativa me parece ser a ética, no sentido de mais diretamente
afetada por este princípio de um ambiguidade dilacerante no valor que podemos
conferir à energia psíquica que nos move a desejar e recusar os objetos. É
fundamental a ideia de ausência de um ponto de ancoragem anterior à lógica
historicamente estruturada dos desejos para o estabelecimento de parâmetros de
valor, seja através da recorrência a planos de uma energia vital, seja a
projetos racionais calcados em uma suposta moralidade inscrita na razão humana.
Além disso, ela coloca em xeque substancialmente algum desígnio divino,
religioso, que permitisse pensar numa espécie de natureza humana ou de essência
da moralidade anterior às vicissitudes do modo como lidamos com nossos desejos.
Como
tudo que é ambíguo parece nos colocar uma tarefa muitas vezes desesperadora,
devido à dificuldade de estabelecer uma cisão de identidade clara, esta
não-resolução desiderativa das formas culturais elevadas e baixas incomoda
profundamente, devido ao fato de que o tempo todo estamos sujeitos a mesclar,
confundir e mesmo inverter o valor que estamos dispostos a atribuir a determinado
projeto de vida, político e de cultura em geral. Fica sempre mais tensa a
perspectiva de como avaliar uma determinada realidade cultural, caso assumamos
que seu impulso pode também mover ações cujo resultado se coloca em um extremo
oposto de valoração moral. Lendo a moral kantiana, Adorno disse que nunca
podemos ter certeza do valor moral de nossas ações, assumindo como correta a ideia
de que a nossa intenção consciente de agir eticamente pode mesclar-se a ímpetos
de ordem imoral, egoístas, de vaidade e de amor-próprio que colocam em cheque a
moralidade da ação. Este princípio de incerteza moral, de meu ponto de vista,
apesar de sua aparente concordância com a ambiguidade de que fala Freud,
contém, na verdade, um princípio de sua justificação que contraria essa idéia
psicanalítica.
A
aparência de concordância provém, de forma clara, do fato de que nos retira a
segurança da qualificação moral do agir. Isso, entretanto, caminha no sentido
de exacerbar a dúvida a tal ponto que a moralidade vai coincidir o com o
esvaziamento abstrato de uma ideia de que possamos negar, contrariar e superar
toda e qualquer particularidade, e somente assim, em um plano ideal, nossa ação
seria plenamente ética. Esse princípio de incerteza moral, por assim dizer,
contém uma determinação essencialmente negativa do que é antitético como
resultado de nosso desejo ao agir. A ação ética, como vários críticos de Kant
já apontaram, não somente não deve ficar no plano das intenções, como também
deve mesclar em sua determinação mais íntima o quanto o gozo com o mal está
inextricavelmente ligado ao ímpeto para agir segundo valores éticos. Não
somente não temos certeza de se nossa ação é ética, em decorrência da mescla de
elementos alheios ao agir moral, mas, fundamentalmente, o próprio ímpeto para a
ação ética pode servir a princípios estruturantes do desejo que se aliam de
forma clara, sob o ponto de vista analítico, ao que consideramos oposto a tal
elevação moral.
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