Quem viaja para outros países, não apenas Estados Unidos e
Europa, mas também para alguns da América Latina, como o Chile, constata de
forma impressionante o quanto produtos industrializados, como roupas, calçados,
automóveis e eletrônicos, são bem mais baratos lá do que aqui. Sempre quando do
lançamento de um produto badalado, como os iPhone’s da Apple ou um console de
videogame, vemos várias reportagens mostrando que no Brasil tal produto é “o
mais caro do mundo”. A explicação que parece vigorar há mais tempo, e na qual
muitos ainda insistem, é a de que a carga tributária no Brasil é alta demais.
Várias matérias jornalísticas têm mostrado, entretanto, que, embora esse seja
um fator real, não é o decisivo, pois na verdade o preponderante seriam as
altas taxas de lucro das empresas. Por tudo que li a respeito, estou convencido
de que essa segunda perspectiva é a correta. Se assim é, a pergunta a se
responder é a seguinte: por que nós no Brasil aceitamos pagar tão caro pelos
produtos industrializados?
Em sua coluna no jornal Folha de São Paulo, Vladimir
Safatle respondeu exatamente a essa questão com uma ideia que me parece
acertada, embora insuficiente para dar conta da especificidade deste fenômeno
no Brasil. Resumindo, sua posição é a de que pagamos mais caro porque o preço
alto confere status ao comprador. Safatle cita o exemplo de um psicanalista seu
amigo que passou a ter mais pacientes quando aumentou consideravelmente o preço
da consulta. Pagar caro teria o sentido de um fetiche, de modo que o comprador
se identifica com o preço da mercadoria ou do serviço. Essa ideia é, de fato,
representativa de muito da atitude do consumo, em que, seguindo conceitos
basilares da teoria de Jean Baudrillard, o ímpeto do consumo não é ligado ao
uso concreto que se faz dos objetos, mas sim à apropriação das coisas como
signos de valores menos ou mais abstratos, como feminilidade, status,
juventude, alegria, vigor sexual etc. O problema em empregar este princípio
como explicação para o caso brasileiro está no fato de que ele é válido em
todos países em que o capitalismo chegou a ter a mobilidade e desenvolvimento
que vemos nas Américas e na Europa. Já na década de 50 do século passado
Theodor Adorno havia dito explicitamente que o preço era uma das coisas que se
compram em uma mercadoria, e as formulações teóricas de Baudrillard datam dos
anos 70 na França. Assim, continuamos com a questão: por que no Brasil esse
princípio da atitude consumptiva se dá de forma tão gritante?
Todas as nossas atitudes são sempre motivadas por vários
fatores, que não se situam em um mesmo plano de consciência, pois alguns são
mais profundamente arraigados em nós, marcados por um forte grau de
inconsciência, enquanto outros podem ser mais facilmente localizáveis no âmbito
de nossa percepção e das trocas no imaginário coletivo. A fim de entender como
se dá o resultado dessa convergência de elementos motivacionais, muitas vezes é
interessante estabelecer um vínculo entre fenômenos aparentemente sem ligação.
Tal como a técnica da associação livre de Freud demonstrou, quando conectamos
vivências aparentemente discrepantes surgem significados subjetivos que passam
ao largo de nossa percepção e censura conscientes, possibilitando-nos
compreender uma motivação comum a mais de uma atitude, o que faz com que ambas
sejam esclarecidas de um modo que não seria alcançável na leitura de cada uma
isoladamente.
Permitam-me usar um caso que ocorreu comigo, como um dos vários
exemplos para uma atitude que considero também típica no Brasil. No prédio onde
tenho lecionado nos últimos semestres, todos os quatro são brancos e, como
sempre acontece, os marcadores que a instituição oferece acabam secando muito
rápido devido ao uso coletivo. Para evitar este problema, comprei um marcador
um pouco mais caro, recarregável. Há alguns meses, esqueci-o na sala de aula,
provavelmente na canaleta de alumínio na base do quadro. Dois dias depois,
notei que ele não estava na sala, nem na pasta em que ficam todos os objetos a
serem usados na aula, nem havia sido devolvido aos funcionários da secretaria
do prédio. Como a sala só é aberta com chave por cada professor durante período
de aula, o mais provável é que algum dos colegas de trabalho se apossou do
marcador de quadro branco, pois viu que era um tanto “especial”.
O que impressiona neste como em outros casos semelhantes é a
mesquinhez da atitude. O objeto em questão tem um valor pequeno demais quando
comparado à percepção de si como honesto. Embora seja muito evidente que
grandes furtos sejam repreensíveis proporcionalmente ao valor do objeto
furtado, o complexo psíquico-emocional do que tipicamente se chama “um mísero
ladrão de galinhas” é um objeto que merece uma investigação específica. Indo
direto ao que nos interessa aqui, está muito claro que a pessoa que pratica
essas pequenas apropriações de objetos se “vende” por muito pouco, rebaixando-se,
em sua dignidade, ao valor da própria coisa. Trata-se — de forma pouco
metafórica — de uma compra e de uma venda, pois se está “adquirindo” um produto
e dando-se em troca a própria qualificação de si como honesto.
Voltando à questão do preço das mercadorias, é importante
notar que toda vez que compramos um objeto, pagamos não propriamente com o
dinheiro, mas com o nosso tempo de trabalho (ou o de nossos pais, ou de quem
quer que nos tenha dado dinheiro): comprar significa trocar esforço, trabalho e
energia por um objeto (que por sua vez também condensa trabalho alheio, como
diz Marx, mas vamos abstrair deste lado da equação). Em outras palavras:
trocamos “um pouco de nós mesmos” por algo que queremos. — A esta altura não
deve ser difícil perceber em que consiste o argumento: quem admite, aceita, se
resigna a pagar caro por uma mercadoria está, neste mesmo ato, vendendo a si
mesmo por um preço baixo. Ora, isso é bem análogo à atitude mesquinha de se
apropriar indevidamente de coisas alheias, bem como de “querer levar vantagem
em tudo”, mesmo — e tipicamente — quando são vantagens pequenas demais
comparadas a nossa dignidade, paz de espírito e amor-próprio. Em suma: tudo é
muito caro no Brasil devido a um complexo psíquico-emocional compartilhado em
nossa sociedade que resulta em darmos pouco valor a nós mesmos, em nos
vendermos por muito pouco.
Essa perspectiva não se opõe à defendida por Adorno e
Safatle, em virtude do fato de que a percepção de pouco valor para si é compensada,
através de uma formação de compromisso, com a identificação imaginária com o
preço pago pelo produto. A um só tempo, nós nos rebaixamos e nos elevamos na
compra de uma mercadoria cara, de tal forma que o processo de identificação com
o preço é uma espécie de facilitador psíquico para a pré-disposição de
auto-rebaixamento.
Desnecessário dizer que tudo isso não significa uma
descrição da personalidade, do caráter e da disposição afetiva de todas as
pessoas no Brasil. Trata-se de uma tipificação
ideal, um princípio genérico de análise que se aplica a uma cultura em um
plano que não se traduz na descrição de cada indivíduo. Além disso, ela ainda
deixa em aberto a questão de por que esses traços gerais são fortes em
nosso meio e não em alguns países da América Latina, que indubitavelmente
passaram por um processo de colonização bastante próximo ao nosso — Apesar
dessas lacunas inerentes a esse tipo de análise, creio que ela aponta para uma
característica marcante de nossa sociedade, podendo contribuir para reflexões
mais aprofundadas, com ganhos significativos para a visão sobre a “brasilidade”.
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