Diante das necessárias articulações políticas para as eleições
presidenciais de 2018, fala-se com insistência, e na verdade já há algum tempo,
do caráter supostamente absurdo de uma candidatura de esquerda, como a de Lula,
em aceitar apoio de parcela da direita como do grupo de Renan Calheiros. Diante
da verdadeira desgraça que significou o golpe jurídico-parlamentar-mediático
contra Dilma Rousseff, parece fazer muito pouco sentido “aliar-se aos golpistas”.
Em muitos comentários, lemos que não se deve reeditar o que causou a tragédia
política que sofremos na pele.
Tentarei ser o mais abrangente e sintético possível, propondo
uma resposta clara e, no meu entender, convincente o bastante sobre o que, no
golpe, representaram as alianças com parte das forças políticas que
se beneficiaram com o impeachment presidencial.
Não resta dúvida que Michel Temer é um golpista, bem como a
maioria dos membros de seu partido, o atual MDB. A questão a ser enfrentada
diretamente, porém, deve se dirigir ao princípio motor de seu golpismo, a seus
fatores condicionantes e aos gatilhos que dispararam suas ações decisivas.
Embora não se possa dizer que as manifestações de junho de
2013 façam parte do golpe, ali se iniciou um movimento marítimo de proporções
assustadoras. As reivindicações locais da capital paulista contra o aumento das
tarifas de transporte público produziram uma mobilização popular difusa cujo
sentido acabou sendo dado a posteriori pela narrativa mediática, quando
vários editoriais jornalísticos plantavam diariamente a imagem de que todas as
manifestações difundidas pelo país se dirigiam contra o governo federal.
Nesse caldo político caótico e explosivo, movimentos
reacionários como o MBL, Revoltados Online e atuações de falsários na internet ajudaram
em muito a construir uma perspectiva de crítica corrosiva ao que representavam
os programas políticos construtivos de Lula e Dilma.
Em meio a esta enorme metralhadora giratória, a atuação da
Lava Jato, francamente partidarizada a partir de alguns meses, ajudou a acirrar
sobremaneira os ânimos, fornecendo o apoio institucional à pressão sobre o
governo federal. Se a grande imprensa já seria capaz de forjar a imagem de uma
crise constante — manipulando e torturando os números até eles confessarem
qualquer coisa capaz de mostrar que o governo estava indo mal e o país se
encaminhava para o buraco negro da economia —, com o suporte das delações
premiadas e seus vazamentos seletivos, todos aqueles descontentes com a
ascensão sócio-econômica das classes baixas puderam bater suas panelas como se
celebrassem o advento de uma nova era.
No âmbito político propriamente, a recusa direta, enfática e
agressiva de Aécio Neves em reconhecer a legitimidade do resultado eleitoral
consistiu no aproveitamento de toda esta onda reacionária e lhe concedeu um
ímpeto mais forte e cada vez mais decisivo.
Quando a atuação de Eduardo Cunha já estava prestes a detonar
a avalanche, quando tudo e todos já estavam armados até os dentes de ódio,
insatisfação e espírito reacionário, sentindo-se fortalecidos pela mentalidade
de manada e pelas narrativas legitimadoras do judiciário e da mídia, o STF
ainda poderia, caso fizesse jus ao título de defensor máximo da justiça,
impedir o disparo final. O ministro Teori Zavascki, porém, demorou infindáveis
meses até acolher o pedido da Procuradoria-Geral da República para afastar o
presidente da Câmara. Mesmo diante das acusações e indícios gravíssimos —
verdadeira afronta ao nosso senso de civilidade republicana —, aquele
magistrado somente atuou quando o pedido de impeachment, totalmente descabido,
fora acatado em função da recusa do PT em proteger Eduardo Cunha.
Eu pergunto: quem é Michel Temer em toda esta história? Em
que consiste seu “golpismo”? Certamente ele atuou nos bastidores para
arregimentar os votos suficientes para a aprovação do pedido de impeachment,
tendo não apenas aceitado o papel que lhe coube, como investido ferozmente em
sua consecução. Ocorre que todas as suas ações somente se aproveitaram de toda
a enorme onda que se iniciou em junho de 2013, alastrou-se e foi impulsionada
por diversos atores de diferentes planos em todo o cenário nacional, não
excluindo redes corporativas neoliberais (como a Atlas Network) que
propagandeiam acintosamente suas ideias reacionárias por meio de investimentos
milionários em Think Thanks. O “golpe” foi um movimento pluri-partidário (PSDB,
DEM, PP, PMDB), multi-mediático (Organizações Globo, Folha de São Paulo, Editora
Abril, Jornal Estado de São Paulo), poli-judiciário (da primeira à última instância,
mais Ministério Público), trans-popular (MBL, Revoltados Online, paneleiros, internautas),
bi-nacional (EUA e Brasil). Quando o PMDB pôde mostrar a que veio no golpe,
todos os outros atores já haviam se engajado com unhas, dentes, ossos, músculos,
mente e dinheiro. Temer foi um surfista que manejou muito bem a prancha que
Eduardo Cunha lhe deu, mas não criou a onda.
Caso Michel Temer tivesse se recusado a atuar a favor do
movimento golpista, fatalmente o julgamento da impugnação da chapa Dilma-Temer
teria outro resultado, pois jamais possuiria a mínima força para frear o
movimento golpista. Ele apenas sucumbiria sob as mesmas águas tempestuosas. Se
tivesse tomado posse, sendo contrário às forças golpistas, seria impedido tal
como Dilma, pois assinou os mesmos decretos que ela (tal como qualquer outra
pessoa assinaria, pois as “pedaladas fiscais” nunca foram consideradas crime de
responsabilidade e continuaram a não o ser). “A solução mais fácil era botar o
Michel”: isso mesmo, a mais fácil, e não a única, pois a impugnação da chapa
também estava à mão, embora mais complexa em termos de legislação eleitoral.
Diante de todos esses pontos, creio não haver dúvida de que o
estado calamitoso vivido em função do golpe não foi causado pela “aliança com
os golpistas”. Sem aquele maremoto que começou em junho de 2013, toda a ampla
parte do PMDB que apoiou o golpe teria continuado tal como sempre, com seu
fisiologismo, sua eterna sede de barganhas, seu desejo de ocupação dos cargos
públicos etc., mas não passaria disso. Temer continuaria no lusco-fusco de uma
vice-presidência decorativa, sem participar nem mesmo de eventos diplomáticos
relevantes. Em vez do surfista oportunista, quedaria apenas flutuando em meio
aos demais objetos na superfície do oceano.