Freud disse que a psicanálise é alvo de dois preconceitos fundamentais, um intelectual e outro moral. O primeiro diz respeito ao fato de que a teoria psicanalítica afirma que toda a vida psíquica, em e para si, está fundada em princípios e forças inconscientes, de tal forma que a consciência não passa de uma superfície, sustentada por grande quantidade de fatores que dirigem nossos pensamentos, ações e sentimentos, mas dos quais não podemos ter compreensão definitiva, por mais que reflitamos sobre nós mesmos. O segundo preconceito liga-se à especificidade de tais conteúdos inconscientes, ditos como sexuais em sentido amplo, ou seja, não apenas no âmbito genital, mais particularmente fundados na vivência infantil e em uma sexualização precoce. Haveria, assim, não apenas um deslocamento do centro subjetivo, da consciência para o inconsciente, mas também uma determinação daquela por fenômenos muito pouco aceitáveis pela moral do ocidente.
Tais resistências ligam-se ao que a psicanálise estabelece, afirma, enquanto creio poder diagnosticar um outro tipo de preconceito, fundado no que ela não diz, no que se recusa a fornecer. Por mais que ela critique a moral sexual moderna e contemporânea, por exemplo, entretanto não se propõe a estabelecer parâmetros e princípios valorativos aos desejos em geral. Se, por um lado, ela é criticada por não fornecer provas e confirmações empíricas de seus enunciados e conclusões, por outro, gera facilmente a percepção de um vácuo, de uma hesitação ou indefinição quanto ao que se poderia usar como apoio com vistas à superação do estado de sofrimento, alienação e inércia cultural. Este último aspecto culmina, por exemplo, nas várias críticas que se fazem ao pessimismo de Freud de O mal-estar na civilização.
Creio que este incômodo em relação a tal postura da psicanálise torna-se visível de forma instrutiva ao lermos diversos textos que comparam Nietzsche e Freud. Sempre que a disposição do autor está em mostrar a “superioridade” do primeiro em relação ao psicanalista, a argumentação se apoia de forma bastante clara no fato de que o filósofo não apenas afirma categoricamente a valoração positiva da afirmação da vida, ao criticar o niilismo cristão, por exemplo, mas também coloca visceralmente a perspectiva de uma superação dos valores decadentes através da idéia de uma transvaloração de todos os valores, centrada na idéia do Übermensch (super-homem, além-do-homem). Em contraste a este vigor e entusiasmo com a ultrapassagem de um estado de decadência cultural, a investigação psicanalítica mostra-se, de fato, por demais vazia, indefinida e “modesta”. Em vez de articular seu discurso a partir de um delineamento positivo do desejo, como a vontade de potência, em relação à qual muito do que a contraria será taxado como desorganização dos instintos, decadência e niilismo, o psicanalista insistirá na especificidade com que fantasias, traumas e censuras inconscientes constituem o desejo do indivíduo por dentro, de modo que, seja poder ou submissão, grandeza ou apequenamento, alta cultura ou formas humildes de reprodução da vida, grandes ou pequenos e modestos ideais, etc., podem igualmente ser a expressão tanto de saúde quanto de patologia psíquica.
Toda teoria lida com conceitos universais, e não é diferente em relação à psicanálise, mas, ao mesmo tempo, ela os articula sempre tendo em vista que a verdade do desejo dependerá intrínseca e radicalmente da conformação particular, singular, da história de enfrentamento com a realidade exterior. Por mais que o conceito de recalque, por exemplo, seja tomado como universal para todo ser humano — até mesmo independente das diferenças culturais —, não contém em si um princípio que articule uma valoração específica no modo como o sujeito se relaciona com objetos da realidade. Os critérios para a saúde psíquica fundam-se muito mais no modo como cada sujeito compreende, admite, recusa, desvia e digere seus complexos fantasísticos inconscientes, do que em uma perspectiva macro, geral, universalizada, tal como é típico de diversas formas de fazer filosofia.
Esse mal-estar causado pela psicanálise evidencia-se nas leituras que filósofos e outros cientistas sociais fizeram dela. Theodor Adorno, por exemplo, se queixa, em suas Minima moralia, que a concepção de prazer de Freud é altamente ambígua, pois algumas vezes este se mostra progressista, ao recusar o caráter opressivo da cultura, mas ao mesmo tempo se mostraria até reacionário, ao dizer das neuroses como a incapacidade do sujeito de se adequar às exigências éticas e sociais (como salientamos em nosso texto anterior). Embora o aspecto conclusivo de Adorno seja equivocado, sua crítica é movida por uma percepção “correta”. De fato, nem sequer o conceito de prazer pode ser julgado, avaliado, de forma tão suficientemente inequívoca como quer o filósofo. Tudo dependerá, mais uma vez, de uma perspectiva dinâmica, que leve em conta o campo de forças altamente conflituoso e instável que subjaz ao sentimento consciente a que damos o nome de prazer. Este não se limita, em hipótese alguma, ao que é agradável, “gostoso”, aprazível etc., pois deve incluir sistematicamente o que é mórbido, corrosivo, mortífero, auto-destrutivo.
Diante disso, embora o pessimismo freudiano em O mal-estar da civilização possa ser criticado em larga medida, eu diria que a psicanálise não é nem otimista nem pessimista em relação às potencialidades humanas de construção de uma cultura e de uma forma de vida mais livre, verdadeira e eticamente responsável. Dentre os vários aspectos que constituem suas tarefas e objetivos, um seria fornecer apoio suficientemente crítico para que nos apercebamos do que gera a inércia das formas de subjetivação, tanto no âmbito individual quanto coletivo. Uma vez que esta linha inercial seja tornada maleável, os direcionamentos que surgem como novas possibilidades são deixados em aberto, demasiadamente em aberto.
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