Nas
eleições presidenciais francesas de 2002, chamou a atenção o fato
impressionante de a extrema direita, com Jean-Marie Le Pen, ter chegado ao
segundo turno. Dez anos depois, Marine Le Pen, filha de Jean-Marie, obtém uma
votação até mesmo maior do que o pai, apesar de ter ficado em terceiro lugar.
Embora não tenha sido uma surpresa, tendo em vista algumas previsões dos
institutos de pesquisa, esse desempenho da Frente Nacional instiga a uma
reflexão sobre o comportamento do eleitorado. As propostas deste partido, em
sua maioria, são típicas das correntes políticas mais à direita: elevação e
criação de barreiras protecionistas, xenofobia (com uma rejeição explícita aos
islamitas, devido ao que a candidata chamou de uma “invasão muçulmana”) e
retorno da pena de morte à legislação.

A
segunda direção para a análise é a de considerar os votos de Le Pen como de
protesto, particularmente contra a política de Sarkozy. Dada a crescente
insatisfação com o posicionamento da França no cenário de crise econômica
européia, os eleitores teriam votado em um candidato com quem não
necessariamente se identificam, mas que representa uma negação e afronta a um
projeto político em relação ao qual estão desapontados, desiludidos. Tal como
ocorre em casos semelhantes, em que mais vale a negação de uma realidade
política, e menos a afirmação de programas específicos, os eleitores teriam
escolhido um candidato cujo posicionamento é tão extremo quanto a indignação
perante os rumos do país.
Creio
que ambas as perspectivas contemplem aspectos efetivamente existentes dessa realidade.
De fato, é inegável que uma parcela do eleitorado se identifique com as
posições racistas e isolacionistas da extrema-direita, bem como outra se
compraza em apenas externar uma frustração para com um projeto político que já
puderam experimentar durante vários anos. Por outro lado, penso que essa
expressiva votação da extrema direita seja um sintoma deveras interessante de
uma dinâmica da vida política, particularmente de inserção do indivíduo no
âmbito macro da sociedade.
É muito
evidente que este acontecimento deve ser entendido no contexto da enorme crise
política que afeta toda a Europa. A questão reside em saber por que um quinto
do eleitorado francês favoreceu, não propriamente uma uma corrente de direita,
mas de extrema-direita.
De meu
ponto de vista, existe algo em comum entre os vários tipos de voto-protesto
(como o que o elegeu o palhaço Tiririca no Brasil, em que está em jogo a
negação da política em sua face mais evidente) e esses crescimentos da
extrema-direita, que possuem entre seus fundamentos a exclusão social e
nacionalismo exacerbado. Em ambos os casos, a disposição para o engajamento em
projetos progressistas e inclusivos cede espaço a uma relação verticalizada com
a política, em que, por um lado, se aposta em medidas duras, imediatas e com um
foco preciso, direcionado para aspectos da vida política situados mais na
superfície, como é o caso da imigração, e, por outro, toma-se a instituição
política em bloco, como algo que pesa e se impõe violentamente sobre o
indivíduo, e a atitude do eleitor significaria um modo de cada um se excluir,
se afastar desta trajetória opressiva.
Está
muito claro que tanto o voto protesto típico quanto os dirigidos à extrema
direita indicam o desejo de eliminar mediações construtivas, que tenham em
vista mecanismos laboriosos de construção de soluções complexas e de
médio/longo prazo. A questão reside em saber se haveria uma lógica mais
substantiva no processo de integração política do indivíduo para além desejo de
exprimir tendências políticas pouco “nobres” ou de simplesmente protestar
contra tudo e todos, votando em uma campanha bizarra de um candidato sem
absolutamente nenhum projeto político.
Os
panoramas políticos que admitem grande diversidade de correntes nas eleições
(ou seja, que não possuem a polarização drástica tal como nos EUA, entre
democratas e republicanos) permitem fazer uma análise de uma típica disposição
dos indivíduos em participar de forma construtiva, progressista e inclusiva no
espaço público. A minha idéia é de que se deve prestar atenção ao modo como
essa disposição é favorecida precisamente com a percepção de que as ações
políticas governamentais podem, de fato, ser eficazes na construção de uma
realidade social satisfatória, consistente e favorável a uma democracia não
apenas formal, mas também de conteúdo. Eu diria que, apesar da existência de
inumeráveis circunstâncias de exceção, nas épocas em que há a percepção de um
progresso consistente por vias de decisões políticas, haveria por parte da
população maior receptividade às propostas de tendências situadas mais à
esquerda do espectro político, que privilegiam políticas sociais, de incentivo
à distribuição de renda, de reconhecimento de direitos de minorias, de atenção
ao meio ambiente, de recuperação do valor da força de trabalho em confronto com
o capital etc. Embora programas políticos típicos da direita também se afirmem
em momentos em que vigore a percepção de um progresso mais constante, e que
correntes da esquerda se saiam mal nestes mesmos cenários, parece-me que esta
típica guinada à direita em momentos de desilusão e de favorecimento da
esquerda em épocas de progresso constituem uma manifestação que me parece
reveladora de algo inerente à política enquanto tal. Cada indivíduo se sente
mais motivado a participar da dimensão construtiva das mediações de projetos
políticos inclusivos e de médio-longo prazo na medida em que a conexão entre a
cúpula de poder e os assuntos que lhes dizem respeito mais diretamente se
mostra mais viva, operante, eficaz.
Como
exemplo de aplicação dessa idéia, eu digo que a eleição de Lula em 2002 só foi
possível em virtude do quanto o projeto político e econômico de Fernando
Henrique Cardoso mostrou-se eficaz para a estabilização econômica e recuperação
do poder de compra das classes médias. É evidente que a reeleição de FHC em 98
se deveu ao desejo de continuidade de uma política específica, mas o que parece
bastante significativo é o fato de o PT ter conseguido superar uma resistência
histórica das classes médias em 2002. Para além da recusa a José Serra
especificamente, creio que o princípio mais profundo do movimento político que
propiciou a eleição de Lula foi a disposição em apostar em um projeto político
construtivo em virtude do modo como o projeto anterior se mostrou eficaz em
larga medida. Que o final do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso tenha
elevado a insatisfação popular foi, de meu ponto de vista, um catalisador para
a eleição de Lula. De um ponto de vista mais “profundo”, esta tornou-se
possível em função do desejo de reafirmar o movimento de progresso
político que ainda estava vivo na memória, devido aos efeitos da estabilização
econômica. (Naturalmente, há vários outros aspectos envolvidos, como a
deliberada posição conciliadora do programa de Lula em 2002, pouco carisma
popular de José Serra etc. Minha análise quer apenas salientar o quanto a
aposta em Lula teve como uma de suas condições, de fundo mais geral, a
receptividade a um movimento progressista motivado pela percepção concreta de
um progresso econômico fundado em decisões políticas.)
Se você
gostou dessa postagem,
compartilhe
em seu mural no Facebook.