Toda
crítica cultural preocupada com princípios da integração dos indivíduos na
sociedade precisa se haver, em algum momento, com a difícil questão dos
critérios e parâmetros do que deva ser considerado patológico ou normal/sadio.
Ao longo de seus escritos, Freud forneceu definições gerais, tanto para a
dimensão patológica, quanto para a da normalidade/saúde psíquica. Uma delas,
talvez a mais conhecida e por isso mesmo bastante comentada, sendo também alvo
de muitas críticas, é a de que a saúde psíquica consistiria na capacidade de
amar, trabalhar e ser feliz. Quero aqui abordar apenas este último aspecto, a
partir de uma perspectiva mais específica, a saber, um fator bastante frequente
nos quadros de sintomatologia das neuroses: uma visão de mundo pessimista ou,
por assim dizer, entristecida ou também derrotista.

Comecemos
por uma colocação adversativa, através da constatação do quanto é
impressionante a insistência com que a sociedade de consumo convida-nos a
sermos felizes, a gozarmos e experimentarmos prazeres de toda a ordem,
vendendo-nos não apenas bens e serviços que garantam esse suposto bem-estar,
como também atitudes e valores conectados com o usufruto de tais oportunidades.
Diante disso, a ideia de Freud de que a saúde psíquica consistiria na
capacidade de ser feliz pode facilmente ser criticada — como de fato o foi por
autores da escola de Frankfurt, como Adorno e Horkheimer —, pelo fato de
subjugar os indivíduos, no âmbito da teoria, àquilo que já são incessantemente
bombardeados em seu cotidiano. É como se a psicanálise reprovasse os indivíduos
por não aceitarem e compartilharem o que lhes é oferecido como meios para a
felicidade. Tal crítica, entretanto, desconsidera um elemento fundamental: a
capacidade de ser feliz de que fala Freud não necessariamente precisa ser lida
como adequação a parâmetros culturalmente estabelecidos do que signifique “aproveitar
a vida”, nem tampouco se funda em uma concepção de felicidade tal como estamos
acostumados a pensar desde Aristóteles, ou seja, como um conjunto pleno de
contentamento e satisfações. Na verdade, esta oferta incessante de “produtos
para sua felicidade” é bem propriamente um índice de que a ideia de Freud está correta.
Jean
Baudrillard, em sua Sociedade de consumo, disse que esse convite
reiterado para ser feliz demonstra que o prazer não é um componente da
atitude do consumo. Os indivíduos que consomem teriam muito mais como
sentido de sua atividade a participação em um universo de troca de significados
abstratos através dos objetos consumidos, bem como trabalhariam para confirmar
a validade dos mesmos valores que eles “compram”, de tal forma que o
consumo é mais uma força produtiva do que de usufruto, em sentido
mais estrito. Embora essa perspectiva me pareça válida e muito frutífera, quero
aproveitar dela apenas a indicação do quanto a positividade dos signos de
bem-estar testemunha o seu oposto, ou seja, a ausência de prazer, sua
desconsideração — o que interpretamos, de uma perspectiva psicanalítica,
dizendo que tais signos têm em vista uma insuficiência psiquicamente legível da
capacidade de contentamento e satisfação com as oportunidades objetivamente
existentes na realidade.
Uma das
dificuldades mais perceptíveis nesta problemática do
prazer/satisfação/felicidade é a evidência com que a circunstância objetiva de
vida exerce influência constante para percepção de si de cada pessoa. Como a
todo momento se está sujeito às vicissitudes das condições materiais da vida,
parece difícil estabelecer um princípio de compreensão geral da capacidade de
ser feliz, tal como está nas formulações freudianas, independente do
mundo exterior. Essa independência, entretanto, pode ser pensada de duas
maneiras: por concebermos o desejo como tendo uma dinâmica e um princípio de
estruturação tal que, sem considerarmos as circunstâncias concretas de vida,
poderíamos detectar uma espécie de tendência sintomática para a uma visão
pessimista e insatisfeita; e por ser pensada também como um princípio prático,
de ação, no sentido de que a felicidade ou a satisfação com objetos de desejo
seria determinada por nossa capacidade de nos tornarmos independentes dessas
condições objetivas. Em relação a este último aspecto, o próprio Freud, no Mal-estar
da civilização, se detém na análise de estratégias possíveis de evitar o
sofrimento, tais como a arte, a religião e a fantasia/imaginação. Impossível
não lembrar das atitudes apregoadas pelo budismo e por várias outras tendências
religiosas favorecendo renúncia, abnegação, despojamento e diversos outros
modos de negação do desejo em relação aos objetos da realidade. Em que pesem as
inumeráveis diferenças entre as doutrinas, seu denominador comum é a percepção
menos ou mais clara de que a soma de todas as circunstâncias objetivas da vida
faz com que todos seus objetos sejam ilusórios e, consequentemente, deceptivos
para o desejo, que se torna assim, então, fonte de sofrimento reiterado. A
expressão filosófica mais enfática disso é, inegavelmente, a que se lê em
Schopenhauer.
O que
temos em vista é um aspecto do problema, que toca não propriamente na
(im)possibilidade objetiva de equacionar o próprio desejo de tal forma que
nossa satisfação possa não ser afetada pela conexão dúbia, incerta e frágil com
objetos de desejo possíveis, mas sim em um princípio constitutivo de todo
desejar em geral, que faz com que a incapacidade de ser feliz ou de obter
satisfação significativa ao longo do tempo derive de uma disposição
subjetiva específica para tomar os objetos de desejo como insatisfatórios,
precários, insuficientes etc. Tal disposição pode ser falada de muitas formas,
mas quero aqui abordá-la de forma mais restrita, considerando um vício de
percepção dos objetos impulsionado por fatores desiderativos inconscientes.
A
partir de conceitos da estética de Kant, podemos dizer que toda percepção é interessada,
pois está sujeita às vicissitudes de nossas inclinações, que abrange nossos
desejos, sentimentos e necessidades. Nietzsche dizia que todo perceber é mentiroso,
pois sempre fazemos uma seleção e um recorte no que percebemos, na medida em
que conferimos ênfase em determinados aspectos e descartamos outros. Adorno e
Horkheimer diziam que todo perceber é projetar, pois o objeto final
percebido será sempre resultado do modo como nós devolvemos ao mundo mais do
que recebemos dele, uma vez que temos que sintetizar e modelar os dados
recebidos através de nossas faculdades e poderes cognitivos. Estes e outros
argumentos filosóficos nos demonstram de forma clara o quanto nossa percepção
implica sempre um fator de seletividade e condicionamento. O tempo todo
optamos, consciente e inconscientemente, por perceber as coisas da forma como
fazemos — o que não significa dizer que nossa perspectiva crie, produza toda a
realidade. Se isso é válido já no âmbito da ação cognitiva de perceber as formas,
cores e texturas dos objetos, com muito mais razão ainda o é no modo como lhes
conferimos importância, valor e significado para nosso prazer, contentamento e
satisfação.
Embora
toda percepção seja seletiva, condicionada e condicionante, entretanto nem toda
ela necessariamente precisa ser dita como viciada. Tal como dizemos que
um dado de seis faces pode estar viciado, no sentido de conter um peso de
chumbo que o faz tender a parar com o número 6 voltado para cima, podemos dizer
que “antes” mesmo de entrarmos em contato com os objetos de desejo na realidade
(isso não apenas ou propriamente no sentido cronológico), é possível haver uma
tendência “sintomática” de conferir muito mais importância e peso na
determinação de nosso estado subjetivo àquilo que é ruim, insuficiente,
precário, mal feito, impreciso etc. em cada momento, objeto e realidade.
Desconsiderando as circunstâncias objetivas de privação, dor e infortúnios que
podem ser extremos, é muito evidente que sempre haverá uma enorme quantidade de
fatores (bons e ruins) que influenciam o nosso estado de contentamento, de modo
que esta visão pessimista tipicamente neurótica de que fala Freud, a partir
dessas considerações, teria como um de seus fatores o ímpeto de
sistematicamente acentuar, enfatizar e prestar atenção a toda sorte de
elementos negativos do real. É difícil exagerar o quão insistentemente o estado
de espírito de insatisfação pessimista provém muito mais desse vício de nossa
percepção do que de um desfavorecimento por assim dizer objetivo por parte de
algo na realidade. Naturalmente, não é viável e nem mesmo possível estabelecer
um princípio geral para se medir a influência desta predeterminação de nosso
(des)contentamento, pois a constelação de fatores envolvidos em cada caso é
infinitamente variável. Além disso, embora seja possível dizer em geral do que
motiva este vício de percepção (que já abordamos de um determinado ponto de
vista em outra postagem), é necessário uma reflexão não apenas pontual, de cada
relação com os objetos em um determinado momento, como também uma análise das
motivações inconscientes individuais, e a terapia analítica nos parece um
caminho que, embora com todos os problemas advindos da demanda pessoal e da
viabilidade objetiva em cada caso, deve ser percorrido.
Voltando
à questão do sentido dos signos de felicidade no consumo, podemos dizer que
eles extraem muito de sua força do fato de sua estrutura “contornar” esse vício
perceptivo, purificando-se de diversos aspectos ambíguos e mesmo
contraditórios. Sua idealização, assim, presta um “serviço” à estrutura
neurótica de seus consumidores, vendendo objetos cujo brilho e glamour resolvem
no jogo de imagens, luzes e cores o que permanece não resolvido na raiz do
desejo.
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