O
debate sobre o aborto e sua legalização será sempre dificultado pelas diversas
ordens de valores que convergem para o tema. De igual modo, vários são os tipos
de argumentos usados tanto a favor quanto contra a permissão jurídica para a
interrupção da gravidez. Em virtude da extrema dificuldade de equacionar esta
questão no âmbito do embate político, principalmente quando próximo a eleições
presidenciais, faz-se necessária uma discussão perene, de modo a amadurecer ao
máximo nosso posicionamento. De forma análoga a como candidatos pró-legalização
se sentem constrangidos e mesmo acuados nas campanhas eleitorais, creio que
muitos intelectuais se abstenham de fazer pronunciamentos mais explícitos nesse
sentido, em virtude de certo receio de comprometer sua imagem perante o
público. Porém, tal como disse Vladimir Safatle, é preciso dizer com todas as
letras quando se é favorável à legalização do aborto.

Quando
se diz que a mulher não tem o direito de interromper a gravidez pelo fato de
que o embrião, que depende de seu corpo, deve ser protegido da decisão
daquela em não mais continuar a gestação, isso significa dizer que o país, ou a
humanidade, tem o direito de exigir que a mulher faça um uso de seu próprio
corpo para continuar a linha de desenvolvimento vital de um ser que ainda não
tem as características de um ser humano em sentido estrito. O que se percebe é
uma espécie de curto-circuito entre a concepção humanitária de respeito
incondicional à vida humana e a materialidade da linha de progressão vital para
o feto, fazendo com que o corpo e o livre arbítrio da mulher sejam sumariamente
desconsiderados. O princípio universal de respeito à vida humana é tomado como
contendo uma sublimidade tal que rebaixa a zero a dignidade do desejo da
mulher de não mais colocar seu corpo a serviço da continuidade da geração
de uma vida. Tal como já se argumentou, trata-se de uma invasão indevida na
esfera da intimidade do corpo da mulher, com a consequente anulação de seu
direito de dele dispor em sua autonomia.
O
núcleo do problema com aquele contra-argumento é o de que não se está dizendo,
ao se reivindicar o direito da mulher a seu próprio corpo, que o feto seja uma
parte dele, mas sim que ela não deve ser constrangida a transformar seu útero
em um veículo, instrumento, meio forçado de progressão de um ser que ainda não
possui a integridade vital de um ser humano. De meu ponto de vista, fica muito
clara a diferença entre a abstração do princípio geral de dignidade da
vida humana, quando aplicado a um embrião, por um lado, e a concretude enfática
do direito da mulher de não mais colocar seu corpo a serviço da geração
possível de outra vida. Que este princípio de uma vida em potencial seja
abstrato a ponto de gerar concepções equivocadas recebeu uma boa ilustração
quando o Supremo Tribunal Federal no Brasil convocou diversos especialistas
para discutir quando seria o “início da vida”: se na concepção ou em etapa
posterior. Tal como diversos artigos e colunas de jornais apontaram, a própria
questão foi mal formulada, uma vez que não está em jogo o princípio geral,
genérico, de vida, mas sim a qualificação como humana propriamente, e
nesse aspecto é no mínimo muito controverso que um embrião com poucas semanas
de surgimento possa ser chamado de humano em sentido estrito.
Esta
problemática é extremamente relevante, pois se situa no centro do debate acerca
das diversas formas de se pensar os direitos humanos. Tal como se sabe, o
direito universal à propriedade privada pode ser invocado, em sua generalidade
abstrata, como meio de perpetuar injustiças sociais ligadas à dinâmica perversa
de concentração de renda, dentre cujas consequências está a acumulação
desmesurada de terras nas mãos de poucos proprietários. Desse modo, a fim de
favorecer a consecução legítima e real deste princípio de propriedade, ele deve
ser retirado de seu nível de abstração vazia, e especificado tendo em vista as
vicissitudes das injustiças sociais decorrentes de um liberalismo desenfreado
presente na dinâmica capitalista. Assim também é o caso do princípio quase
ontológico da liberdade humana, em cuja abstração vêm se proteger e camuflar
relações perversas de domínio e subjugação.
Muito
mais importante do que a corporificação de um princípio abstrato de dignidade
da vida humana em um embrião é o respeito ao desejo da mulher de dispor de seu
próprio corpo, este sim bastante concreto e tangível, muito mais representativo
de nossa consciência da dignidade da pessoa, com seu livre arbítrio e
autonomia. Trata-se de uma questão político-filosófica, que reflete os
problemas da conexão entre o núcleo da individualidade e ideais coletivos, e
não é de somenos importância aferir o quanto é justo passar por cima da
concretude do livre arbítrio para favorecer princípios universais, santificados
em sua abstração inexpugnável.
Se você
gostou dessa postagem,
compartilhe em seu mural no Facebook.