Todas
as formas de organização social, apesar de suas infinitas diferenças, possuem
sempre um grau expressivo de inércia, ou seja, possuem uma tendência de
manter indefinidamente diversas formas de sua estruturação, que se reproduzem
ao longo do tempo, apesar das transformações de maior ou menor intensidade. Tal
como Michel Foucault e outros teóricos de esquerda mostraram abundantemente, as
relações de poder adquirem formas de manifestação que se ramificam por
todo o corpo social, abrangendo as relações de gênero, familiares, religiosas,
além das que são usualmente expressas nesses termos, como na política e na
economia. Por mais que haja vontade política para combater de forma estrutural
as consequências de tais relações, como o desemprego, o analfabetismo, a
miséria etc., diversos aspectos da realidade social demandam uma intervenção
pontual, específica, orientada por um princípio racionalmente concebido de
correção de injustiças sociais. Deu-se o nome de ação afirmativa a esse
tipo de intervenção.
A
justificativa empregada para este mecanismo de correção, no âmbito jurídico,
das distorções da vida social, econômica e cultural baseia-se na diferença
entre a democracia meramente formal e a material. Que a lei
garanta uma igualdade de todos perante o ordenamento jurídico não significa que
todos tenham, concretamente, as mesmas oportunidades de aproveitamento do
espaço da cidadania. As condições econômicas e sociais em que cada pessoa nasce
e atravessa sua infância e juventude podem minar completamente as
possibilidades de desenvolvimento de suas capacidades intelectuais, seus
talentos e suas aptidões. Além disso, o peso da rejeição social através de
preconceitos e discriminações de toda a ordem induzem um desfavorecimento
causador de profundo desnível nessa suposta igualdade perante a lei. Desse
modo, se queremos que, de fato, concretamente, as pessoas tenham igualdade
perante a lei, é necessário tratar de forma desigual aqueles que,
concretamente, já o são, no âmbito da orquestração social, econômica,
religiosa, profissional etc.
Esta
argumentação me parece realmente válida. Seu valor consiste em que a
formalidade da lei, a ideia abstrata de democracia como de uma igualdade de
todos para enfrentar o mercado de trabalho, as oportunidades de acesso à riqueza
etc., pode servir muito bem de camuflagem para o desejo de manutenção dos
privilégios que se acumulam ao longo do tempo, e que fazem com que a igualdade
de oportunidades se torne cada vez menos real. Uma igualdade abstrata e não
é democrática, mas sim totalitária, impositiva. Isso configura claramente
um exemplo de ideologia, na medida em que um determinado interesse, um
desejo de manutenção de relações de poder é camuflado, dissimulado, por detrás
de uma evidência cristalina de um princípio universal, qual seja, de igualdade
formal de todos perante as leis e normas que regulam a sociedade.
Estratégias
como esta, de se protegerem interesses por detrás de princípios abstratos,
fazem-se presentes em diversas circunstâncias, principalmente quando alguma
dinâmica social é avaliada numericamente, como a produção científica, de
pesquisa, de ações sociais etc. Muitos valores são criados, bem como distorções
são cometidas, sistematicamente, mas se tornam invisíveis aos olhos
daqueles que só leem o real a partir da planície dos conceitos, dos
princípios gerais e dos números. Estes planos abstratos, normalmente, estão pacificados,
pois estão acima ou abaixo das vicissitudes com que a experiência humana se
traduz como sofrimento, dor, desejo, ansiedade e uma série de outros motivos
e consequências de nossa presença no mundo, não traduzíveis pela
universalidade comunicativa que a lógica, o número e as leis se arrogam ter.
A ação
afirmativa é uma explicitação do quanto a dinâmica multifacetada da realidade
social necessita ser compreendida e sofrer intervenção pontual, específica,
particular, ao longo do tempo. Ela é resultado da assunção de que a
realidade humana sempre carece de uma intervenção para que ela atualize um
princípio mais geral do que as das leis e princípios, a saber, a ideia
de que o ser humano é sempre fruto de um processo contínuo diz recolocação em
jogo do que é necessário para se construir um espaço de justiça comum. Trata-se
de reconhecer a necessidade de corrigir, sempre e de novo, os rumos que o
projeto comum de vida alcança devido ao modo com que as diferenças sociais se
fazem valer a cada instante. Isso não significa que se deva abdicar de
princípios universais, mas sim a constatação de que sua verdade deve ser sempre
medida pelo modo com que eles produzem uma realidade que não é transparente em
sua formulação abstrata. Por fim, há que se reconhecer, também, que não é
simplesmente devido à intenção de corrigir distorções que se garante a validade
de qualquer ação afirmativa. Tal como comentei em outra postagem, o princípio
de correção política da linguagem, quando aplicado em âmbitos inadequados, como
do dicionário e das obras de arte, produz distorções relativas ao modo com que,
em determinados aspectos, se está aquém e/ou além da necessidade de intervir
nas vicissitudes da vida.
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