Uma das
muitas faces do saber compartilhadas por correntes filosóficas e psicanalíticas
consiste na ideia de que há vários regimes de verdade, planos, níveis e
estratégias de validade/validação de nosso discurso, tanto em relação a nós
mesmos quanto ao mundo. Os diversos autores da escola de Frankfurt, por
exemplo, insistem na necessidade da diferenciação entre a verdade factual, de
descrição empírica da realidade, e o saber construído historicamente, já
considerando a própria conformação histórica de nossos órgãos dos sentidos.
Muita coisa pode ser tomada como verdadeira por ser um registro “fiel” no
âmbito dos fatos, mas se prestar a uma mentira, a uma construção ideológica, ao
sustentar uma concepção de mundo cuja força é tão grande que é capaz de
produzir a própria realidade, que, então, passará a ser objeto de um discurso “verdadeiro”.
Através do conceito de racionalização, Freud também inseriu o conceito
de verdade em uma dinâmica do desejo mais abrangente, de tal forma que o
caráter objetivo da verdade factual pode servir de apoio para legitimar
fantasias e desejos inconscientes cuja lógica, força e conteúdos são por demais
inassimiláveis em níveis psíquicos mais superficiais, próximos à consciência.
Creio
que esta perspectiva crítica se aplique em múltiplos cenários, desde a
inadequação radical dos desejos inconscientes perante nossas tentativas de
dissimulá-los com verdades objetivas, até a postura filosófica macro de
contestação da verdade científica, tendo em vista a lógica de manutenção de
relações de poder do capitalismo no âmbito global. Um desses momentos
intermediários, que gostaria de abordar hoje, é o das relações amorosas.
Todos
nós sabemos que o amor necessita de um equilíbrio entre a busca de
identificação e a assimilação de diferenças. Qualquer relacionamento afetivo
minimamente prolongado mostra que ao lado do desejo de identificação, de
compartilhamento de experiências em comum, vigora a tarefa incessante de
reconhecer as diferenças do outro como contendo seu valor próprio, sua
legitimidade, na exata medida em que se situam no âmbito do direito do outro
ser isto mesmo, um outro. Dentro dos limites, individualmente vividos, da
possibilidade de absorver as diferenças no círculo traçado pelo desejo de se
reconhecer no outro, é mister atentar à necessidade de reconhecer a verdade do
desejo e do modo de ser do outro como uma espécie de ideologia com a
qual, dentro de certa estratégia amorosa, se deva construir uma “nova” verdade,
só que situada em um outro plano.
É fácil
idolatrar a verdade — principalmente as que se ligam ao que é externo à
subjetividade. Infinitas são formas de fazer valer o desejo de permanência do
real nas formas em que ele se solidificou através da atitude narcísica de se
contentar com sua descrição. Por outro lado, a estratégia da suspeita, típica
da psicanálise, que quer remeter a verdade do mundo a uma raiz mais profunda,
do inconsciente, também pode servir a este movimento ideológico de adoração de
uma verdade que desconhece ou negligencia a necessidade de produção de
mediações vivenciais que valem precisamente pelo modo como que medeiam a
intimidade profunda do psiquismo e a exterioridade do real.
Uma das
características fascinantes do amor consiste nesta tensa indefinição entre
uma interioridade “verdadeira” e “essencial” e a produção de significados e
sentidos através do modo com que se estabelece esta ponte com a diferença do
outro. Esta irresolução, pensada naquela perspectiva de planos distintos de
verdade coloca o problema da identidade e da diferença em uma dinâmica que me
parece bastante instrutiva — mesmo que não seja mais do que por ser
oportunidade de introduzir uma dúvida mais producente do que uma verdade
auto-satisfeita.
O
núcleo da questão se mostra na maneira com que a afetação do modo de ser alheio
por seu desejo convida a uma readequação de nós a nós mesmos. Trata-se
de um convite, que, como tal, pode ser recusado, mas a ideia é que sua
aceitação envolve a posição em diálogo do caráter dubitativo (de colocação em
dúvida) da validação de verdades em vista de seu questionamento como a serviço
de ideologias (pessoais ou mais amplas). Apesar de estranha e confusa, esta
primeira colocação caminha bem no sentido do que se quer pensar aqui. O meu
desejo pelo outro se define também pelo meu desejo em relação ao que eu sou,
tanto por mim quanto por aquilo que o desejo do outro produz em meu modo de
ser. Noutras palavras, quero gostar de mim pelo modo com que sou solicitado a
ser na vinculação com outro. Mesmo que não aceitemos como um todo a ideia de persona,
tal como Jung delineou (= as diversas máscaras que usamos para nos
relacionarmos com os outros), algo dessa ideia pode ser mantido, mas
acentuando-se a tensão entre o que impele a construção destas máscaras, a
saber, o desejo do outro por mim e o quanto me agrada esta máscara que visto em
virtude desta demanda. Na medida em que a cumplicidade com um outro entra
definitivamente em jogo devido ao desejo de identificação, deve passar a ser meu
“interesse” o deslocamento do outro perante si e a necessidade de sua máscara
perante mim, bem como a recíproca, de tal forma que, no limite, posso gostar
muito de alguém, fundamentalmente, pelo modo com que sou “compelido” a ser algo
diferente do que sempre me definiu, mas, também, ao contrário, posso não gostar
de um relacionamento, não “propriamente” pelo que o outro é, mas sim pelo que
eu me vejo sendo nesse espaço intermediário das mediações, que constrói as
identificações para além das diferenças.
Nesse
palco das transferências afetivas, os deslocamentos entre verdade, máscara e
ideologia constituem uma racionalidade muito própria, definida por seu
teor convidativo a se entrar na dança continuamente. Temos um chamamento a que
se participe de uma área nebulosa entre a verdade e a facilmente vista como barroca
produção de compromissos com o império de nossas demandas caprichosas de
vida. A suspeita do excessivo, do que é “over”, impregna este RSVP em virtude
do fato de que o tempo todo a máscara do outro convida e instiga a que se use
uma própria, e longe estamos da certeza do sentido, da validade e da
consistência desta indumentária que usamos para frequentar este palco em comum.
Se, como dissemos no início, o pensamento crítico desnuda a verdade como
serviçal da mentira, o amor nos oferece uma verdade por detrás do que pode não
ser mais do que um blefe do desejo, tanto meu quanto do outro.
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