Na
semana passada, terminei o texto anunciando um comentário crítico sobre a
concepção de Marcuse sobre a repressão social, mas como já publiquei um texto
relativo a este assunto (acessível nesse link), achei melhor falar sobre outro
tema que me interessa, a partir de uma questão: o humor praticado
profissionalmente está acima dos nossos compromissos morais, éticos, políticos
ou jurídicos? Se não está, em quais deles se enquadra? — Essa questão se mostra
relevante à medida que cresce o interesse pelo princípio de correção política, tanto
no sentido de questionar sua validade, o quanto de defendê-lo. Nessa
perspectiva, o que estaria em jogo é a pertinência de se colocar algum limite
para o humorista. Seria esse limite dado apenas pela recusa do público, ao não
mais frequentar indeterminado espetáculo? Caberia algum tipo de cobrança, mesmo
que apenas através da exposição de opiniões nos meios de comunicação? Se tal
cobrança é válida, isso significaria que devemos condenar, de alguma forma, o
humor politicamente incorreto?
Compartilho
da ideia de que todo o humor envolve alguma espécie de ruptura, de quebra das
expectativas em diversos níveis, seja no plano do conhecimento, dos afetos, da
moral, da lógica etc. Através de que mecanismo for, desde uma torta na cara até
a montagem de um enredo complexo, a situação cômica deverá ser mediada por um
choque em relação a uma normalidade prévia. O humor inteligente pode exercer
este seu poder de ruptura em relação a modos de vida, de pensamento e de afetos
bastante inerciais, até mesmo ossificados, de tal forma a permitir uma
transparência em relação a substratos da vida que não teriam esse tipo de
visibilidade através de outra forma de reflexão. A envolvência afetiva do riso
contém um apelo que faz com que o insight adquirido criticamente em
relação a um modo de vida possa obter, quando em uma constelação emocional
propícia, um significado prático, concreto, que me parece no mínimo bastante
interessante. Além disso, a própria disposição de compreender a realidade
através do prisma da ironia, do desdobramento do real sobre si mesmo com sinal
invertido, tudo isso me parece capaz de gerar uma compreensão crítica do mundo
especialmente progressista e progressiva.
Essa
caracterização do humor o aproxima da ciência e da arte, na medida em que os
três atuam em situações-limite. O conhecimento científico trabalha sempre com problemas
de fronteira, de modo a expandir o nosso saber sobre a natureza ou a vida humana.
A arte, concebida como uma atividade original, envolve sempre o novo como um
imperativo, de modo a negar e superar formas previamente estabelecidas de
percepção imagética e imaginária de relacionamento do sujeito com o mundo.
Todas essas três atividades podem perfeitamente exercer seu poder de negação e
ruptura sem colidir de forma por demais perturbadora com expectativas morais,
políticas, jurídicas etc. Ao mesmo tempo, é evidente que tanto a arte quanto a
ciência somente obtêm o progresso que demonstraram até hoje pelo fato de não se
submeterem a preceitos valorativos externos a seus critérios de excelência
próprios. Quanto mais um cientista ou um artista tiver que prestar contas da
dimensão política de seu trabalho, mais isto pode implicar uma perda de um
avanço altamente desejável. Quem advoga pela inadequação do princípio de
correção política para a atividade do humorista reivindica o mesmo tipo de
licença que as outras duas formas culturais arrogam para si, e que já
obtiveram, em diferentes graus e formas ao longo da história.
A
justificativa mais específica dessa suposta autonomia do humor, que o aproxima
da arte, mas de forma peculiar, é a correlação entre prazer e fantasia.
Uma vez que o riso é imediatamente conectado ao prazer, e este sob a égide do jogo
com imagens, não é difícil perceber o quanto a situação cômica consiste, muitas
vezes, em uma assunção forte, ou mesmo violenta, de vivências íntimas
vergonhosas ou pelo menos muito dificilmente apresentáveis publicamente. Assim,
o humor pode se pôr como um legítimo porta-voz da assunção de fantasias no
plano do jogo da imaginação, só que agora situado no espaço compartilhado
socialmente. Tal como as comédias que tomam como objeto o cotidiano do
casamento expõem publicamente os aspectos mesquinhos, bizarros e insuportáveis
da vida a dois — sem que, ao mesmo tempo, nos vejamos ofendidos com isso —,
muito de nosso preconceito contra outros povos, etnias, preferências sexuais
etc. deveria obter “direito de passagem” pelo fato de trafegar naquela via
possível de exposição imagética e lúdica na esfera coletiva. Tudo se passa como
se a liberdade subjetiva expressa na ideia de “eu quero é ser feliz” fosse
transposta para a de “eu quero é (fazer) rir”.
Por
mais que, de fato, a ciência e a arte somente progridam pelo fato de não se
submeterem a certos tipos de restrições prévias, isso não significa que o ganho
de tal progresso justifique uma liberdade infinita com seus materiais. Como
exemplo evidente, nenhum progresso realmente alcançável na produção de remédios
legitimará o uso em cobaias humanas (se isso implicar sofrimento injustificado,
risco de vida, mutilação física ou psíquica etc.). O experimento com seres
humanos deve ser sempre feito dentro de limites eticamente muito bem
delimitados. Da mesma forma, não é qualquer tipo de obra de arte que deva ser
aceita como tal, caso envolva, por exemplo, o mesmo tipo de ônus que citei
acima para a ciência. Assim, se tais limites são estipuláveis para essas duas
formas culturais, é também justificado conceber algum tipo para o humor. A
licença do humorista em relação a seu material não deve se infinita, pois a
perda de nosso senso de integridade moral, por exemplo, torna injustificável o
ganho que se obtém com esta ruptura irônica com normalidade da existência. Uma
piada sarcástica que tome como objeto um paraplégico, por exemplo, mesmo que se
mostre (por hipótese) verdadeiramente engraçada , não está justificada.
Esta
argumentação pode parecer excessivamente baseada em uma espécie de “contabilidade
cultural”, em que se ponderam ganhos e perdas, benefícios e prejuízos. Creio,
entretanto, que no âmbito de nosso diálogo político, dos enfrentamentos na
objetividade do espaço em comum, a circulação dos valores deve realmente
obedecer a uma economia de nossos investimentos, sejam eles financeiros ou
afetivos. Embora não haja como estabelecer uma mensuração matemática para os
ônus e bônus de nossas apostas, recusas e empreendimentos, nosso senso crítico
deve, sim, ser tomado como capaz de ponderar os bens culturais em suas
distintas esferas de valoração. Há que se ter em mente, por outro lado, que
apenas o exercício constante de nossos juízos pode nos fornecer um norteamento
suficientemente preciso para a comparação entre realidades situadas nesses
planos altamente heterogêneos.
Diante
disso, eu diria que o humorista está de fato sujeito a limites no uso de seu
material, particularmente quando envolva algum tipo de sarcasmo e agressividade
em relação a indivíduos, grupos sociais, etnias etc. Como, entretanto, o nível
de sarcasmo/agressividade é infinitamente variável, não me parece de forma
alguma sensato estabelecer qualquer tipo de censura prévia para essa atividade.
A crítica pública posterior, seja ela apenas ético-política (como textos
veiculados pelos meios de comunicação ou manifestações de rua) ou jurídica,
deve ser sempre encarada como legítima, não significando necessariamente isso
que se costuma dizer como uma ditadura do politicamente correto — tanto não se
tem essa ditadura de um lado, quanto não uma liberdade infinita, por outro.
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