Como ocorre com toda ciência, a psicanálise também precisou
constituir seu objeto de estudo, através do delineamento do espaço do psiquismo
em contraste com o âmbito biológico e com a dimensão apenas consciente, linguística
ou cultural. Diante da impossibilidade de uma determinação factual, positiva,
da realidade psíquica, que sempre precisará ser inferida hipoteticamente a
partir de suas manifestações mais evidentes, multiplicam-se as dificuldades de
articulação e estabelecimento dos conceitos que pretendem fornecer suficiente
visibilidade para aquilo que, por sua própria “natureza”, não é visível. Nesse
último aspecto, é instrutiva a comparação de Freud entre o inconsciente e a
coisa em si de Kant, na medida em que ambos se situam para além de nossa
percepção consciente, embora o primeiro admita um grau de aproximação cognitiva
maior do que a segunda, de acordo com a perspectiva freudiana. Nesse cenário,
não causa surpresa verificar o quanto o discurso psicanalítico está eivado de
metáforas, analogias, metonímias, empréstimos conceituais de outras ciências,
como biologia, termodinâmica, física, bem como de ciências humanas e de
filosofia. Trata-se, de fato, de um grande esforço de definição do
psíquico-inconsciente por diversos movimentos metafóricos no sentido mais
próprio do termo, a saber, de trânsito, tráfego e transporte de significados,
através, portanto, de uma nucleação dinâmica de movimentos de transitividade
semântica, conotativa e definitória.
Embora Freud sempre tenha desejado conferir à psicanálise o
estatuto de uma ciência, e não apenas de uma prática, ele não pôde fazer valer
todo o poder semântico e definidor dos conceitos que tomou de empréstimo de
outras ciências. Isso é não apenas atestado pelo abandono de uma fisiologia
pseudo-positiva para os mecanismos psíquicos tal como ensaiada no Projeto
para uma psicologia científica, mas também devido à dimensão prática,
clínica e intuitiva do saber psicanalítico, que se desdobra e ganha
consistência como uma derivação da fala dos pacientes histéricos e obsessivos.
O discurso mais abstratamente teórico ainda poderá ser visto como resultado de
um movimento tradutivo, de re-significação de um dizer de si que não possui
virtualmente nada da fixidez e clareza distintiva dos conceitos científicos.
O discurso psicanalítico se forma, então, através do
encontro de dois movimentos que deslocam, traduzem e re-elaboram palavras e
conceitos: um deles por assim dizer horizontal, proveniente das ciências, da
filosofia e das artes; e outro vertical, oriundo da experiência clínica. Na
medida em que a psicanálise não pode prescindir nem do enriquecimento dado pela
experiência prática, nem das formulações teóricas, não é possível — sob o preço
de uma violenta ação arbitrária e incompatível com o projeto freudiano — fixar
com exatidão o que tem maior peso de determinação no delineamento do
vocabulário psicanalítico. Isso fica especialmente claro no contato com o
próprio texto de Freud, em que as palavras de uso cotidiano, por mais que
adquiram densidade conceitual e semântica teórica, ainda permanecem ligadas à
experiência lexical originária. Isso é explicado não apenas pela constituição
mais transparente da língua alemã, que não passou por uma metamorfose substantiva
semelhante à da língua portuguesa em relação ao latim e o grego, mas também
pelo desejo programático de Freud de evitar o movimento de abstração enfático
que caracteriza a Filosofia.
Na medida em que nos situamos no âmbito do texto original
freudiano, essa mobilidade semântica e sintática pode ser acompanhada em seus
diferentes matizes, permitindo situarmo-nos em algum de seus patamares, desde
os mais concretamente clínicos até os mais abstratos, como a metapsicologia. Na
medida em que nos colocamos a tarefa de não apenas traduzir os textos
freudianos para um outro idioma, mas também falar deles, explicá-los e
apresentá-los em outra língua, temos um outro movimento, não mais horizontal ou
vertical, mas por assim dizer de translação, de deslocamento paralelo para um
outro espaço em que as correlações horizontais e verticais obedecem a leis e
princípios lexicais diferentes, e nesse momento começa a ficar especialmente
imperiosa a tarefa de decidir o privilégio que será concedido, em cada caso, ao
deslocamento horizontal/teórico ou vertical/prático-clínico. — Como essa
temática é bastante geral, podendo ser discutida em relação a inúmeros
conceitos, vamos nos restringir aqui ao de pulsão.
A palavra alemã “Trieb” é de uso bastante comum, coloquial,
e aponta para uma força interna que impulsiona de forma basilar, fundante da
ação ou do movimento em geral. Não é empregada apenas em relação aos seres
humanos, sendo distinguida fundamentalmente do esforço (Streben) que
fazemos para alcançar alguma coisa. Nesse sentido, ela aponta para o que há de
mais elementar como ímpeto volitivo. Este uso geral e não-técnico realmente dá
margem a uma leitura ampla de Trieb
como um impulso ou instinto, considerando tais palavras em português como
conectadas a uma força ou o ímpeto não especificado, e, no caso de instinto,
ligado essencialmente à dimensão somática, biológica, de natureza. Considerando
que as formas mais superficiais de nossa consciência dos desejos incluem
especificações linguísticas, simbólicas, culturais, para este ímpeto mais
fundamental, a palavra “instinto” foi escolhida pelo tradutor inglês James
Strachey e mais recentemente por Paulo César de Souza como correlatos de da
palavra alemã Trieb.
A teoria pulsional de Freud especifica claramente a dimensão
somática como fonte do Trieb.
O caráter pressionante da pulsão, que o autor considera sua característica mais
própria, liga-se à tensão somática, que exige uma forma de satisfação, meta de
todo Trieb. Como o conceito de
instinto nos remete inevitavelmente à ideia do comportamento animal, o tradutor
brasileiro defendeu sua opção dizendo que, por um lado, o comportamento
instintivo não apresentaria sempre uma regularidade tão enrijecida quanto
normalmente se pensa; por outro lado, a tradução de Trieb por pulsão incluiria certa arrogância humana de se pensar
acima e distanciado dos outros animais. Não nos cabe aqui investigar em que
medida o comportamento instintivo dos animais apresenta rigidez total ou não,
mas voltaremos a esse ponto ao final. Quanto a essa suposta arrogância,
parece-me fruto de uma percepção muito equivocada, pois defender que haja
diferenças substantivas do ímpeto volitivo humano perante o animal não
significa em hipótese alguma apoiar qualquer superioridade de nossa espécie em
relação às demais. Deste modo, importa mais considerar o modo com que o
conceito de Trieb em Freud se conecta
de forma sui generis ao âmbito somático, fisiológico.
Fazer isso significa assumir um posicionamento explícito
quanto à carga teórica demandada na tradução e interpretação do Trieb freudiano. Implica dizer que
necessitamos conferir uma especificidade técnica que não é transparente na
própria palavra alemã, em virtude do que salientamos antes sobre o caráter mais
fundamental da raiz de todo ímpeto volitivo, na verdade não apenas humano.
Ocorre que essa tecnificação conceitual salientada pela tradução, entretanto,
auxilia a evidenciar um adensamento teórico que Freud conferiu a este conceito,
que não se torna claro no âmbito linguístico-vocabular do texto original. É
evidente que não devemos tratar essa característica como uma fraqueza ou
desvantagem do próprio texto freudiano, mas sim considerar a tradução como
veículo indutor de nossa atenção para um movimento conceitual do texto não
imediatamente perceptível na sua superfície lexical. Se isso é válido, então um
dos princípios mais básicos que orientam as duas traduções novas mais
abrangentes da obra de Freud (de Luiz Hanns e Paulo César de Souza), a saber, a
relutância de empregar termos e estruturação discursiva mais técnica, não
procede em pelo menos alguns momentos decisivos na leitura tradutiva do
original.
Parece-me claro que a pulsão na teoria freudiana deve ser
concebida através de dois grandes movimentos, mais ou menos bem delineados no
vínculo entre a base somática e o âmbito da fantasia. Em vários momentos Freud
coloca explicitamente que a sexualidade surge como se apoiando nas funções de
autopreservação. Trata-se de uma relação parasitária, em um movimento de
derivação. Nesse sentido, a base somática é, de fato, fonte da estimulação
pulsional, em virtude do caráter erógeno de todo o corpo do bebê. Tal como
vemos em uma muito citada passagem dos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, nada do corpo do bebê está isento da possibilidade de produzir
excitação. Toda essa carga de estimulação, entretanto, não está desconectada do
âmbito perceptivo, em que a presença da mãe e de sua solicitude sexual são
veículos inquestionáveis para a fixação desta carga afetiva em representações
fantasísticas, que irão se consolidar como traços mnésicos, nas primeiras
formas de recalcamento originário. Todo este primeiro percurso marca um
psiquismo ainda incipiente, não completamente organizado e não cindido nos
sistemas inconsciente e pré-consciente/consciente.
Na medida em que o âmbito das representações fantasísticas
se consolida, temos então a emergência deste núcleo de representações fixadas,
ao redor das quais irá gravitar uma carga de afeto extremamente forte, cuja
força deriva precisamente do caráter ainda fragmentário, parcial e
contraditório das representações. Nesse momento, cabe falar da constituição do
ímpeto pulsional em sentido mais estrito e teoricamente mais adensado do termo:
não como uma base difusa e indeterminada de todo e qualquer um ímpeto volitivo,
mas sim como uma carga afetiva pulsante cujo núcleo atrativo radica não na
dimensão somática, mas sim nas representações fantasísticas que aglutinaram,
fixando, o impacto estimulatório do corpo do bebê em contato com o mundo ao seu
redor, particularmente a mãe.
Nesse sentido, o objeto, um dos quatro componentes do Trieb, não seria propriamente a coisa
externa, mas sim a representação fantasística recalcada e, portanto,
inconsciente. Ele seria o mais variável da pulsão, não ao considerarmos este
segundo movimento de consolidação das representações recalcadas, pois nesse
registro o que se tem é uma fixação por assim dizer extrema. A variabilidade e
contingência objetal reside no fato de não haver um lastro biológico, de
natureza, para este polo fantasístico atrator dos afetos. O objeto pulsional,
então, demarca uma fixação de uma energia psíquica, a libido, não originalmente
existente em nós por natureza, mas que dependeu, sim, de modo essencial de toda
a dimensão somática para sua emergência. Essa mediação do objeto pulsional
recalcado, por sua vez, estabelece o ponto de ancoragem do que será a energia
pulsional em sentido mais próprio.
Se tais reflexões estão corretas, então a fonte do Trieb não pode ser o corpo, na medida em
que o objeto pulsional tenha se constituído através do recalque originário.
Nesse sentido, pulsão e recalque são dois conceitos intimamente
co-relacionados, de modo que a ideia freudiana de que o recalcado exerce uma
pressão constante para seu retorno e de que a pulsão, de forma diferente do
estímulo, exerce uma força constante, exprimem um mesmo estado de coisas, a
saber, a constituição pulsional do psiquismo a partir da fixação de
investimentos libidinais nos primórdios de constituição do aparelho psíquico.
Também implica dizer que o Trieb não
pode ser concebido como uma força primária e indiferenciada proveniente de
extratos naturais profundos dos organismos em geral incluindo o ser humano.
Essa concepção, afiançada pela semântica coloquial do termo, necessita ser
substituída pela construção teórica freudiana, que faz a energia pulsional
originar-se do movimento histórico individual de constituição dos primeiros
objetos fantasísticos, dependente em larga medida das contingências do vínculo
entre o sujeito que se forma e as condições ambientais e de vínculo afetivo com
a mãe e com o pai.
A palavra “instinto”, de acordo com essa perspectiva, é
extremamente inadequada, pois nos reenvia a uma concepção naturalizante do
ímpeto motor, mesmo que desconsideremos as questões relativas ao comportamento
hereditariamente fixado dos animais. No que concerne a este último aspecto, meu
posicionamento é o de que nem tudo no comportamento animal é motivado por
instinto, cabendo variações e desvios individualizados de comportamento e
percepção, com maior ou menor expressividade, dependendo de cada espécie, e
nesse ponto sigo as formulações de Henry Bergson. Segundo o autor francês, o
que marca o comportamento instintivo é a acoplagem não-mediada entre os planos
cognitivo, ou seja, de percepção da realidade, e o prático, do ímpeto de ação.
Na medida em que percebemos os animais manifestando variações individualizadas
de comportamento, então podemos dizer que está em jogo uma forma de ação em que
o instinto não é integralmente determinante do agir. No que concerne ao ser
humano, essa acoplagem imediata somente pode ser dita para reações muito
específicas do arco reflexo e algumas ações do recém-nascido, que deixam de ser
realizadas de forma tão automática com alguns meses de vida.
A tradução de Trieb
por pulsão vem, assim, demarcar um espaço de especificação conceitual
importante, não só no âmbito do texto freudiano, mas em termos de nossa
concepção sobre questões antropológicas significativas, em que a mediação
simbólica entre o ímpeto desiderativo e a ação adquire um modo de compreensão muito
importante.
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