Duzentas
e oitenta e duas pessoas. Todas devidamente assentadas, após pagarem para ouvir
um recital de piano. O seu recital. Você deverá tocar, de memória, uma peça em
três movimentos que somam cerca de 36 minutos de execução. São centenas,
milhares de notas. São dezenas, centenas de agrupamentos melódicos, fraseados,
encadeamento de acordes, tendo o peso de uma entidade de direito próprio, cuja
inspiração e expiração conformam o hálito da música, insuflando vida a todos os
átomos de notas que habitam os orbitais de seus pentagramas. Proporcional à
dificuldade de mediar a complexidade da partitura e o que será ser ouvido e
sentido pela plateia, tem-se a possibilidade do nervosismo, da tensão de
cumprir todo o leque de expectativas: não apresentar uma interpretação
totalmente literal, mas também não por demais emotiva ou idiossincrática; não
se prender aos cânones interpretativos da época em que a música foi feita, mas
também não torná-la simplesmente “atual”; não atentar com exclusividade aos
eventos pontuais da música, mas também não priorizar uma visão de sobrevoo,
global — e várias outras dicotomias que colocam “na parede” quem se põe entre o
banco e o instrumento.
Para
enfrentar esta tarefa sabidamente difícil para nossa estrutura
pulsional/emotiva, procuraremos algum truque, artimanha ou drible, como por
exemplo o de pensar que se a peça fosse executada para cada um dos espectadores
em separado, a carga emocional visivelmente diminuiria, e não deveria ser
diferente pelo fato de que estão todos juntos, ou, de forma mais elementar,
simplesmente procurar esquecer, ignorar, a plateia, fazendo um esforço de
concentração e foco absolutos na relação com o instrumento e a música.
(Desnecessário dizer que nem todas as pessoas precisarão de tais subterfúgios,
mas meu interesse se volta precisamente para quem precisa — que é o caso até
mesmo de músicos experientes.) Embora não todas, mas certamente a maioria
daquelas estratégias possui em comum o fato de tentar negar astuciosa- e
convincentemente a realidade contida no peso da expectativa do olhar de
centenas de pessoas, dentre as quais fatalmente haverá algumas com conhecimento
técnico suficiente para perceber os menores deslizes e imprecisões. Importa
saber, investigar e, mais propriamente, instigar a evidência do que é
propriamente o espetáculo: o que se espera ver como impactante, incomum, novo,
diferente, que não apenas satisfaça a expectativa, mas a ultrapasse, tornando
aquele momento efetivamente único?
Todo o
instrumentista sabe que deve colocar-se não apenas no lugar de quem toca o
instrumento, mas também de quem ouve, ou seja, deve ser espectador de sua
própria prática musical. É preciso um distanciamento em relação ao puro fazer,
assumindo o ponto de vista de quem julga, aprecia, critica. Em uma oscilação
bem sucedida entre esses dois papéis, corrige-se uma perspectiva pela outra, em
que cada uma possui seu grau e forma de objetividade e também de subjetividade
na relação com a música. Não é difícil perceber que a presença de um grande
número de espectadores reais faz deslocar de forma vertiginosa o centro
gravitacional dessa dialética, fazendo com que um dos polos assuma um peso e
uma força de atração forte em demasia.
Quando
se acompanham as exibições dos melhores ginastas nas olimpíadas, em que a excelência
das apresentações está bastante acima da média, fica muito evidente que as
diferenças decisivas se darão, em larga medida, não pela qualidade da
apresentação, mas sim pelos erros. As notas já são tão expressivamente altas,
próximas de 10, que as variações de décimos ou centésimos dependem de um olho
clínico para captar sutilezas na performance, de tal modo que a diferença
fundamental é dada por um erro evidente, grosseiro, que marca para baixo,
exclui, enquanto os 3 ou 6 primeiros lugares irão se diferenciar minimamente um
do outro. A menos que haja uma performance bastante
inovadora, arrojada e perfeita, e considerando o profissionalismo
abundantemente repetidos nas apresentações, o mais sonoro “Oh!!” ficará por
conta de uma queda repentina, de uma falha brusca e decisiva, de um passo em
falso na trave etc., momento em que o impacto na audiência tanto maior será
quanto mais o atleta possuía chances reais de vencer a competição.
Para
além das infinitas diferenças nos complexos afetivos individuais, que
singularizam a resposta a essa circunstância de cobrança de uma performance
perfeita, ou pelo menos bem realizada, está em jogo uma espécie de
curto-circuito na produção de uma verdadeira excepcionalidade, de algo
que afirme de forma cabal e tangível a radicalidade do espetáculo, satisfazendo
a expectativa ao romper uma de suas faces e afirmar a outra. A dimensão voyerista
do espectador é inserida intimamente na apresentação, trazendo consigo toda sua demanda
pornográfica de um desastre espetacular iminente, que confirma, em seu caráter
de exceção, de falha admirável, a substância humana que é consumida nas
execuções “quase perfeitas”. O fracasso expõe as vísceras do que se apresenta
sublimado na face cristalina que, de tão polida, diferencia-se em frações de
milímetros. Nesse sentido, o nervosismo nessas situações típicas de
enfrentamento do olhar das multidões é menos índice de recusa de errar do que a
produção subjetiva antecipada de uma diferença radical entre o comum e o
espetáculo, ao romper de forma emocionalmente explosiva uma outra diferença, a
saber, entre quem faz e quem aprecia/julga/critica. O olhar extasiado do
espectador não cobra apenas a perfeição, mas também provas contundentes de que
ela tem valor, que tanto mais é evidenciado, quanto mais a falha, o erro e o
desastre colossal entram em cena. O palco onde ambos os protagonistas (a
perfeição e a falha retumbante) irão atuar em conjunto é a autoconsciência do
artista (ou de quem mais assumir um papel análogo), e um de seus ruídos mais
ensurdecedores será propriamente a tensão emocional do nervosismo.
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