O aprendizado de ciências humanas e de filosofia
passa não apenas pelo estudo de teorias, mas também da história das sucessivas
formas de constituição, crítica e mutação de seus objetos. A validade do
conhecimento científico e filosófico não depende apenas dos regimes internos de
configuração de sua coerência e sistematicidade, mas também do modo com que
cada figura teórica se defronta com as anteriores e, através de um olhar
retrospectivo ulterior, prepara o terreno para novas configurações. Não se
trata de dizer, já devemos advertir, de uma sucessão linear e muito menos
prioritariamente progressiva, no sentido de aperfeiçoamento contínuo. Para além
dos critérios de validação ao se correlacionarem discurso e objeto, bem como
conceitos, temas e problemas de cada teoria entre si, nosso interesse deve se
guiar por um olhar de sobrevoo, em que as mutações, retrocessos e hesitações
das teorias devem compor, nas linhas de suas vicissitudes históricas, certo
regime de verdade do próprio objeto, ele mesmo passível de ser concebido como
contraditório e multifacetado.
A psicanálise, que nos interessa aqui, é um exemplo
bastante vivo do quanto a objetividade que se sedimenta na história de seus
conceitos, de suas figuras teóricas micro e macro, deixa transparecerem modos
de veracidade de um objeto que surge e se firma na proporção com que as teorias
psicanalíticas se apoiam nas formas de conhecimento preexistentes, bem como
delas se afastam. Nesse registro, interessa-nos menos uma historiografia do
movimento psicanalítico do que uma filosofia da sedimentação histórica da
discursividade própria à psicanálise. Nas suas três faces, tal como delineadas
por Freud — a saber, um procedimento de investigação, um método de tratamento
das neuroses e uma articulação conceitual teórica —, esse saber tem como mola
propulsora fundamental em sua estratégia de auto-validação crítica o constante
vínculo retroativo entre a experiência clínica e os diversos graus de
teorização, desde os propriamente prospectivos de campos culturais específicos
até abstrações analíticas “distantes” da lógica do tratamento e da clínica.
A psicanálise contém, de fato, não apenas várias
histórias no sentido de uma multiplicidade de teorias e conceitos, mas
principalmente de tipos e planos de historicidade. Pode-se certamente
falar de uma pré-história de seus conceitos, como o de inconsciente, nuclear
para todos os textos de Freud, que conheceu delineamentos significativos em
Kant, Hegel, Schopenhauer, Karl Hartmann (com sua Filosofia do inconsciente),
Nietzsche e outros. Até mesmo o conceito de recalque foi apontado por Otto Rank
a Freud como tendo uma formulação importante em Schopenhauer. Há também uma
pré-história prática, afeita ao princípio confessional da religião
cristã, à qual se soma o princípio da narrativa literária da modernidade, em
que o indivíduo se concebe em seu espaço de interioridade reflexiva
não-imediatamente submetido ao imperialismo das forças e valores da
objetividade social. Intimamente conectada a esta última está a pré-história do
objeto psicanalítico em um registro mais global: a subjetividade — sobre a qual
falaremos mais detidamente abaixo.
Saindo da pré- e entrando na história mais
propriamente dita, temos a historicidade da teoria freudiana, desde o encontro com
Breuer, até o final da vida de Freud. Tem-se também a história das colaborações
e divergências entre todos os que se reuniram ao redor do fundador da
psicanálise. Após 1939, conta-se a história dos desdobramentos ulteriores dos
conceitos psicanalíticos, através das ideias de Winnicott, Melanie Klein,
Jacques Lacan, Jean Laplanche e outros.
Não apenas o discurso, mas o próprio objeto também
é percebido como um sujeito de história, carregado e definido por ela aquém de
sua própria visada reflexiva. Cada objeto-sujeito psicanalítico somente o é
porque sedimentou formas de enfrentamento com a alteridade em suas diversas
faces ao longo de um tempo que tem não apenas uma historicidade própria, mas uma
temporalidade sui generis, marcada essencialmente pelo princípio do a
posteriori, ou seja, pela emergência explosiva e de ruptura pela
assimilação produtiva de conteúdos pretéritos, arcaicos, encubadores de um
sentido parcial, cuja insuficiência é incisiva, cortante. Essa mesma
historicidade constitutiva do objeto-sujeito retorna na história narrada no
espaço analítico, cuja lógica de ciclos (posição, retomada, recusa e ruptura)
atualiza o tempo do a posteriori no plano de realidade própria da
transferência entre analisando e analista. Tais vicissitudes acabam
constituindo um outro plano de historicidade, a saber, do trabalho entre os
dois atores neste complexo de trocas: existe uma história da própria análise,
pontuada pelos momentos e épocas de avanço, de estagnação, de retrocesso, de
ruptura e suspensão, bem como pelas interferências externas, por parte tanto do
analisando quanto do analista. Além disso, existe a historicidade inerente ao
trabalho deste último, de sua maturação profissional, do modo como assimila a
contra-transferência, da mutação de sua perspectiva teórica devido a seus
estudos etc.
Como se vê, a história tinge a psicanálise com suas
cores, formas e dinâmicas, desde o âmbito mais propriamente prático-terapêutico
até os mais abstratos e teóricos. Não se trata apenas de uma descrição de
processos objetivamente localizáveis, de forma que a história vivida pudesse se
desconectar da história narrada, posta em uma sucessão de eventos. Bem ao
contrário, cada uma dessas histórias significa, ao mesmo tempo, um discurso que
constitui o objeto e se torna o próprio objeto, dentre outras coisas pelo fato
de que a narrativa histórica em vários momentos é o índice mais confiável dos
bloqueios, nós e impasses vividos de forma por demais opaca no fluxo vital das
subjetividades. Saber de si a partir da transposição da realidade vivida para o
plano da articulação simbólica — como o inverso, ou seja, vivenciar, perceber,
sentir e agir a partir dessa narrativa — obedece ao princípio reflexivo que
estrutura em larga medida a civilização ocidental, ao se afirmar sobre as
experiências culturais da Grécia arcaica. É com base nesse princípio que irei
falar em linhas de gerais algo da história de constituição do objeto em sentido
mais amplo do saber psicanalítico: a subjetividade.
A longa tradição dos estudos de antropologia
cultural e filosófica nos mostra com especial clareza que os mitos anteriores e
fora da Grécia antiga concebiam um mundo a partir de uma narrativa
não-histórica. A temporalidade do mundo profano, da vida cotidiana, se submetia
a uma ordem circular de toda a realidade, em que a força de constituição de
toda a existência era tomada como emanando de uma origem sagrada. Contar a
história das coisas e dos seres humanos era, na verdade, reafirmar um sentido
tanto mais verdadeiro quanto mais intimamente conectado às forças sobrenaturais
que outrora instituíram o real.
Neste mundo de eterna repetição cíclica, cada ser
se vê como que dissolvido em um turbilhão de forças que não apenas interagem,
mas conflitam incessantemente para ocupar o plano da existência. Não somente
imperam vínculos sanguíneos e de parentesco fortes, como as relações totêmicas
entre os clãs e fratrias, como também a natureza é concebida por relações e
vínculos miméticos, simbólicos, analógicos e de contiguidade. Em que pesem as
infinitas diferenças entre as civilizações tribais e míticas, os estudiosos
tendem a entrar em acordo que não existe um espaço vivencial significativo para
se falar de individualidade, de uma percepção de si como um ser que não
se divide, não se dissolve no conglomerado de forças, princípios, substâncias e
seres de toda espécie que estão no mundo e acima dele. Se o conceito de
indivíduo se esclarece a partir da etimologia dessa palavra (indivíduo =
indiviso, uno), o que o estabelece é a ausência de divisão não propriamente interna,
mas sim dessa que se dá com o âmbito social, cósmico e sobrenatural.
Em contraste com essa dissolução cósmica de cada
ser, a cultura grega estabeleceu uma concepção de mundo em que a singularidade,
característica do indivíduo, foi uma marca decisiva: 1) Tal como nos mostra
Ernst Cassirer, os deuses gregos apresentam uma alta diferenciação perante as
forças naturais, apresentando personalidades, traços, características e poderes
com um alto grau de singularização. 2) A narrativa trágica coloca cada herói e
heroína em momentos de decisão cruciais, em que a ruptura entre o mundo humano
e cósmico-coletivo se experimenta como sofrimento, dor e culpa. 3) A experiência
política — em que a verdade coletiva passa pela justificativa perante todos
cidadãos e as diferenças de interesse se exprimem através da mediação do
discurso racionalmente articulado — demonstra outra face dessa afirmação
reflexivamente orientada da diferença de si perante os outros.
Apesar destas e outras formas de individualização,
como o esporte olímpico e a própria filosofia, a cultura grega antiga ainda não
possuía um delineamento do que chamamos hoje de subjetividade. Foi necessário
passar pelo aprofundamento característico da introspecção religiosa cristã, bem
como pelas diversas formas de filosofias centradas no eu, como a Descartes e
dos empiristas ingleses, para que tivéssemos uma concepção de sujeito em
sentido estrito com Immanuel Kant. Tal como vários estudiosos demonstraram, a
antropologia filosófica kantiana contém diversos aspectos bastante
significativos para a concepção psicanalítica. Um deles é seu princípio geral
de que o ser humano é um fenômeno
para si mesmo, ou seja, não se conhece como algo em si, como um puro poder de
produção intelectiva e prática. Nesse sentido, o pensamento é o resultado da
confluência de nossa espontaneidade intelectual e de nossa receptividade, de
nossa passividade em relação a este mesmo poder de produção de sínteses
conceituais. Em outras palavras, nós necessariamente somos espectadores do que
produzimos no fluxo de nossa consciência; precisamos “esperar” que nosso
pensamento ocorra para que “saibamos” o que pensamos. É a partir dessa
decantação sucessiva, em nosso sentido interno, do que produzimos por nosso
impulso produtivo intelectual que conhecemos a nós mesmos. Como, porém, isso
que conhecemos não é apenas fruto de um puro poder de auto-produção, pois
inclui a mediação de nossa própria receptividade, de nosso “olhar” para o que
nós mesmos produzimos, conclui-se que o sujeito é marcado por uma opacidade essencial em relação a si
próprio. Ele é um produto de suas próprias forças subjetivas, cristalizando-se
de forma por demais tardia em relação ao que pode perceber de si mesmo. Quanto
mais mergulha introspectivamente naquilo que o produz, ainda está em
descompasso em relação à sua própria raiz.
Theodor Adorno salientou com bastante propriedade
que toda essa concepção abstrai do ímpeto volitivo (que psicanaliticamente
localizamos como as cargas de afeto), componente necessário para que se conceba
o ato intelectual mais elementar. É preciso desejar realizar qualquer ação
intelectual, independente de diferenciações no grau de reflexividade para esse
desejo, ou seja, do quanto estamos conscientes dele. Muito do advento da
psicanálise pode ser esclarecido a partir da ideia de camadas volitivas que
impulsionam o sujeito a se experimentar, na superfície, como se sustentando
nessas diversas camadas. Essa sustentação, entretanto, não se dá apenas por
justaposição desses estratos afetivos, os quais gravitam ao redor de
representações, mas sim pelo modo com que elas encontram vias de convergência,
de resolução de conflitos, de oposições, de deslocamentos e condensações. Indo
mais além, tais conflitos e deslizamentos não ocorrem como uma qualidade
adicionada a tais forças, mas sim como sua mola propulsora mais fundamental, em
que se enraíza toda a seiva que nutrirá a constituição subjetiva em sentido mais
próprio. Em termos propriamente psicanalíticos, a pulsão tem origem na
irresolubilidade final das contradições volitivas incrustadas nesses planos
mais arcaicos e profundos do sujeito.
Embora, tal como vemos já em Kant, a opacidade seja
uma marca inalienável do sujeito em relação ao que o constitui, a experiência
clínica de Freud, desde seus primeiros casos, demonstra que a figuração
tradutiva da história individual no âmbito da fala é capaz de fornecer graus e
formas de transparência expressivas. Isso ocorre, entretanto, de modo mais
relevante quando a narrativa encontra seus impasses, seus nós e suas
encruzilhadas de sentido, de forma que se pode perceber nesses coágulos do
discurso a emergência de uma força que insiste em se mostrar como o que não se
dissolve na pretensa transparência discursiva, conceitual e linear. Como,
todavia, esta tradução está sempre sujeita às vicissitudes das leituras
circunstanciadas, ela mesma precisa ser alvo de uma destradução, de um
movimento contrário de negatividade, desconstruindo os processos de unificação
afeitos ao núcleo narcísico do eu. Essa história, como vimos acima, se insere e
interage com várias outras, e elas ajudam a se esclarecer reciprocamente em
termos de sua legitimidade, sentido e limites. Percorrer cada uma delas é um
requisito indispensável para assimilar os planos pelos quais o movimento psicanalítico
configura sua lógica própria.
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