Quando se está em um debate, é possível considerar que o
oponente esteja certo por motivos equivocados, e errado por motivos corretos.
Tal como a lógica e a teoria da argumentação demonstram com clareza, pode-se tirar
uma conclusão falsa a partir de premissas verdadeiras, bem como uma conclusão
verdadeira de premissas falsas, em virtude do fato de que a passagem das
primeiras para a última envolve uma atividade de raciocínio ela mesma não
integralmente ditada, preestabelecida, por aquilo que é dito nas bases do
raciocínio. O exemplo mais claro é uma falácia bem conhecida: toda vez que
chove, o solo que está descoberto fica molhado; supondo que o solo agora esteja
realmente molhado, dessas duas premissas, ambas verdadeiras, não se segue
necessariamente a conclusão de que tenha chovido recentemente, pois é óbvio que
o chão pode estar molhado por outros motivos além da chuva. Quando estamos
diante de uma argumentação abstrata, que não é pautada em um raciocínio desse
tipo, de conexão lógica, a passagem entre os argumentos-base e a conclusão pode
ser bastante obscura, difícil de ser assimilada, e, consequentemente, ser
combatida.
Diante da frequente comoção pública quando de um ato bárbaro
cometido por um adolescente menor de dezoito anos, alguns atores políticos
costumam colocar em jogo, ou pelo menos estimular, a discussão sobre a redução
da maioridade penal, que se concentra normalmente na proposta do patamar de
dezesseis anos. Eu sou francamente contra esta redução, mas não gostaria aqui
de expor meus motivos para tal, mas sim focalizar um aspecto por assim dizer
curioso do debate, para o qual me parece especialmente útil prestar atenção,
devido à frequência com que reaparece nas inúmeras discussões em ambientes
corporativos, políticos, de organizações como universidades, assembleias de
diversas ordens etc.
O que tenho em mente é a argumentação usada a favor da
manutenção da maioridade penal em dezoito anos que se pauta pela ideia de que,
seguindo o princípio de que um jovem de dezesseis anos já seria imputável
criminalmente, nada impediria que se propusesse, mais à frente, baixar ainda
mais essa faixa etária para quinze, catorze, treze ou menos, na medida em que
houvesse algum delito grave cometido por adolescentes dessas idades. O
raciocínio baseia-se na ideia de que, uma vez que se concede que a fronteira
dos dezoito anos é relativamente arbitrária, corre-se o risco de tal princípio
ser mais uma vez aplicado para forçar a diminuição para as outras faixas
etárias sucessivamente. Fica claro que existe um temor, um receio, de que uma
vez que se concede a validade da aplicação deste princípio, seremos forçados a
admitir novas aplicações dele “na mesma direção”. Assim, conclui-se que é
necessário rejeitá-lo agora, para nos prevenirmos contra suas aplicações (mais
claramente) espúrias e falsas no futuro. O que digo, diante deste conjunto de
afirmativas, é que se trata de um posicionamento correto baseado em uma
argumentação equivocada. Senão, vejamos.
No filme Lincoln, de Steven Spielberg, há uma
cena divertida em que os membros do parlamento discutem sobre a legitimação da
emenda treze à constituição federal (que viria a abolir a escravidão nos EUA),
e um dos parlamentares discorre contra a emenda com um raciocínio semelhante ao
que descrevi acima, dizendo que se se conceder cidadania plena aos negros,
daqui a pouco vamos acabar fazendo o mesmo concedendo o voto às mulheres,
permitindo a eleição de negros para os cargos públicos etc., e era óbvio para
pelo menos a maioria, que tais eram consequências inadmissíveis para este mesmo
princípio. Assim, por mais que, supostamente, abolir a escravidão fosse
correto, significaria concordar com, e portanto fortalecer, um princípio cujas
aplicações posteriores resultariam em situações absurdas (a ironia, claro,
reside em que cada uma dessas consequências veio, de fato, a se concretizar e
são perfeitamente legítimas). Essa é uma cena realmente divertida, pelo fato de
que, por assim dizer, dá um giro irônico em relação ao que estou argumentando, pois,
realmente, em várias circunstâncias, é necessário conquistar progressivamente a consciência de
legitimidade de um determinado princípio geral advogando sua concretização na
realidade política, econômica, social, cultural etc. Ocorre que nem sempre este
é o caso.
Já participei de diversas reuniões e assembleias em âmbitos
distintos da universidade, bem como em outras circunstâncias de debate tanto
particular quanto em grupo, em que a aplicação circunstanciada de um princípio
era válida (pelo menos em minha perspectiva), mas era recusada através desta
projeção de aplicações futuras inadequadas. Diante, por exemplo, da proposta de
fazer uma consulta geral a todas as centenas de membros de uma determinada
organização (que se defende com a ideia de que naquele momento era necessário
ouvir diretamente todas as pessoas concernidas com o problema), pode-se ouvir
perfeitamente o contra-argumento de que, seguindo este mesmo princípio “daqui a
pouco” (essa expressão sempre aparece) questões não tão importantes assim nos
levarão a mobilizar toda a comunidade. Outro exemplo: alguém argumenta a favor
de contratar uma consultoria profissional para opinar sobre as opções de
investimento de uma organização. Considerando as dimensões relativamente
modestas da empresa, alguém pode replicar: seguindo o mesmo princípio, “daqui a
pouco” seremos forçados a contratar consultorias, pareceres especializados e
uma série de outros veículos de verificação externa, retirando totalmente nossa
autonomia.
Diante de argumentos como esse, que presenciei com
frequência, a resposta pode ser uma só: aceitar a aplicação atual, na presente
circunstância, deste princípio (que fundamente uma determinada proposta) não
significa afiançar, conceder validade antecipada para futuras aplicações (equivocadas)
deste mesmo princípio. Não é pelo fato de advogar uma consulta geral a todos os
membros de uma comunidade em certa circunstância crítica, que se está propenso
a exigir esta mesma solução em quaisquer outros momentos. Não é por se demandar
agora um olhar crítico externo à organização, que se aceitará, com base nessa
mesma perspectiva, que tal proposta valha para todas as outras circunstâncias.
Eu emprego essa mesma crítica à filosofia moral de Kant.
Apesar de sua complexidade, podemos resumir aquilo que nos interessa dizendo
que o fundamento das ações morais, para o filósofo, é a obediência a um
princípio de ação que possa ser seguido por todos os seres racionais. Se o que
fundamenta meu comportamento, minha ação, não é universalizável, se não pode ser,
naquelas circunstâncias, seguido por todas as pessoas, então tal princípio tem
uma validade meramente particular, individual, não sendo moralmente aceito.
Assim, o princípio “posso mentir para me livrar de uma situação de dificuldade”
não tem validade moral, em virtude do fato de que se todas as pessoas o
seguissem, ele se auto-anularia, pois ninguém mais acreditaria nos testemunhos
alheios, quando expressos em circunstâncias difíceis. Trata-se de algo com
validade apenas particular, circunstanciada. Para Kant, somente a ação baseada
em uma consciência de dever, universalmente válida, confere esse sentido moral
das ações. O problema conceitual que nos interessa mais diretamente é quando o
autor nos diz que até mesmo o prazer de se perceber como honesto, por exemplo,
não é um princípio moral válido. O argumento é que ser mobilizado pelo prazer,
mesmo que da honestidade, não é universalizável, pois o prazer é essencialmente
marcado pela singularidade de quem o experimenta, está adstrito à personalidade
individual, em suma, não “garante” a universalidade requerida como princípio
geral das ações morais. Este mesmo princípio que avaliza uma ação com base no
prazer de ser honesto pode levar a uma ação egoísta.
Mais uma vez, o problema reside em se querer demonstrar que um
princípio (no caso, do prazer com a honestidade) supostamente não é válido
porque não é capaz de garantir sua veracidade em infinitas outras
possibilidades de sua concretização. Ocorre que embora pudéssemos conceder que
o imperativo de uma ação baseada no princípio universal seja moral (o que não
está de forma alguma comprovado), é preciso ver que nada garante que ele será
desejado por nós em infinitas outras circunstâncias. De forma análoga a como o
prazer de ser honesto não garante, em sua própria formulação, a validade de
suas outras aplicações, o fato de que o princípio universal do querer depende
sempre de nossa disposição momentânea em aplicá-lo demonstra que ele tampouco “garante”
sua validade, como motivo suficiente de nosso querer, no futuro.
A conclusão a que se chega é que nunca podemos estar
absolutamente certos de qual a extensão válida, qual o horizonte legítimo de
aplicação para qualquer princípio abstrato que paute nossas ações. Tal como o
exemplo ficcional do filme de Spielberg, muitas vezes é realmente necessário
lutar pelo reconhecimento político de um princípio através da luta reiterada
pelo reconhecimento da legitimidade de sua concretização em momentos
específicos, que cada vez mais ampliem o espaço de sua vigência. Outras vezes,
é necessário dizer claramente o quanto determinado princípio tem sua validade
restrita a um âmbito, a um grau e a uma forma de
aplicação, sem que, ao concedermos isso, assinemos um cheque em branco a ser
debitado da conta bancária de nossa visão de mundo a cada nova cobrança em
transações semelhantes no futuro.
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