Nessa onda de protestos pelo país, um dos aspectos mais
controversos é o emprego da violência, tanto como meio deliberado de
enfrentamento por parte dos manifestantes, como veículo de expressão de raiva
generalizada contra o sistema, como ação criminosa desconectada da motivação
geral do protesto, quanto como ação estratégica e tática de repressão policial.
Em cada um dos lados há muitas questões envolvidas, que não podem ser reduzidas
a apenas um princípio geral de análise, considerando-se, também, que em cada
manifestação há formas distintas de violência, bem como em graus diferentes de
intensidade, tanto por parte dos manifestantes quanto da polícia. Apesar dessa
difusão e heterogeneidade, creio que o debate deva ser feito enfaticamente,
mesmo que focalizando alguma face mais claramente discernível em cada momento,
para contribuir para uma perspectiva que consiga apreender o maior número de
componentes da violência ao longo do tempo.
Muito da teoria política, desde pelo menos o século XVII até
nossos dias, pareceu disposta a conceder legitimidade à violência por parte dos
governados na medida em que os
governantes usurpam o poder, como nas tiranias e nas ditaduras, momento em que
todo ato juridicamente ilegítimo contra uma ocupação ilegítima do poder se torna
legítimo. A grande dificuldade da análise de agora é que os protestos que
acompanhamos não pretendem demolir um governo ilegítimo, nem sequer colocar em
jogo o problema de sua legitimidade institucional. Para complicar ainda mais o
quadro, os indicadores econômicos e sociais são significativamente melhores do
que em governos anteriores ao que se iniciou em 2003 com a chegada do PT ao
governo federal. Um desses indicadores relevantes é o de que o nível de
desigualdade econômica no país nunca esteve tão baixo e tende a diminuir nos
próximos anos. Considerando os apelos bastante frequentes por ações pacíficas
no interior das próprias manifestações, como pensar a legitimidade ou
ilegitimidade da violência por parte de alguns grupos? Qual o papel da ação das
polícias como um meio de produzir a
violência que ela deveria combater?
Se esses protestos, por um lado, não almejam a destituição
dos governos em qualquer nível (em que pesem alguns cartazes pedindo a saída de
prefeitos, governadores e da própria presidente), por outro lado eles não são
parte de processo de negociação. Colocar 500.000 pessoas nas ruas e iniciar o
confronto violento com a polícia tem um estatuto completamente diferente de
propor termos a serem contrapostos a outros para se chegar a um denominador
comum. Significa, de saída, na verdade, o desejo de romper as
negociações. Trata-se do desejo de uma negativa enfática da lógica inerente à
razão política dos pequenos ganhos e suas respectivas pequenas perdas, que
podem acumular prejuízos incalculáveis para quem está muito longe do raio de
alcance da mesa onde os lances são postos. Se aprendemos, desde Aristóteles,
que a política é um âmbito da racionalidade discursiva, pautada no diálogo,
então manifestantes que exprimem sua insatisfação com o sistema incendiando uma
concessionária de carros não têm razão. Eles se colocaram fora do que é
estabelecido como o limite da política. Ocorre que aquelas perdas minúsculas
nas tratativas racionalmente articuladas nos contratos políticos de gabinete
podem resultar em um acúmulo violento e, portanto, irracional, em diversos
âmbitos da realidade. Uma senhora idosa que não obtém tratamento médico
minimamente decente, depois de passar por vários hospitais durante semanas, morre
tendo razão.
Este é o princípio geral da violência que vejo neste os
protestos: demarcar negativamente a violência evidente como contraparte do
efeito violento de um estado supostamente racional. Além disso, trata-se de
pautar a violência nas ruas como a outra face da violência das favelas, dos
guetos, das terras indígenas; contra os camponeses, contra as mulheres e contra
as minorias. Como se trata de uma ação essencialmente negativa e negadora, sua
eficácia política é obviamente duvidosa, e todos os que participam dela têm, de
alguma forma, consciência disso. É uma tática de desespero, no sentido próprio
do termo, de quem, naquele momento, se recusa a esperar. Por mais que essa ação
se repita, ela pode sempre se consumir em sua própria prática, em seu instante
explosivo. Em virtude disso, se ela tem alguma chance de ser assimilada como
tendo sentido político, será através de alguma forma de discurso, de
apropriação simbólica. Antes, porém, de falar sobre como isso pode ser feito,
vejamos o outro lado da moeda, a saber, a ação da polícia.
Apesar da grande variação nas práticas repressivas
policiais, creio que a parcela mais significativa delas possa ser comparada com
uma típica atitude dos pais em relação a um ato transgressivo dos filhos. Em
vez de instruir a criança especificamente quanto a uma determinada atitude, o
pai pode negligentemente conceder espaço a ela e, ao ver a transgressão
consumada, punir ferozmente. Em vez de se dar ao trabalho de legitimar
(explicando) racionalmente os limites impostos à ação, o pai concede uma
autonomia ao filho que ainda precisava ser delineada através de uma
concepção racional. Diante da transgressão, em vez de pautar a condenação com
base na ilegitimidade do ato, de modo a que a própria criança pudesse se
aperceber do quanto ela estava realmente errada, o pai — sob o influxo
emocional muito pouco resolvido quanto ao desejo de ser afrontado e de punir —
acaba por condenar não apenas o ato, mas a própria pessoa da criança em sua
totalidade. É como se a punição identificasse o ato a seu autor, momento
em que se troca a consideração sóbria e racional de um erro cometido pela
humilhação (e consequente vergonha) de ser aquele que cometeu e pode cometer um
ato como aquele.
As típicas repressões policiais que temos assistido operam preferencialmente
neste sentido: não querem combater a violência no registro de uma ação a ser
questionada, mas sim marcar com maior amplidão possível toda a manifestação
como tão questionável quanto a materialidade concreta de um carro incendiado.
Assim, a polícia não apenas não reprime os focos de violência, ela os incita,
estimula, multiplica e os faz se alastrar de tal forma que sua evidência sirva
com a melhor clareza possível para humilhar o desejo de protesto, igualando-o,
reduzindo-o à sua forma mais evidentemente desesperada.
Todo este complexo demonstra que, ao final de várias
manifestações, a própria violência se apresenta um campo de batalha simbólico.
Ela será usada, sob o ponto de vista dos manifestantes que a aprovam, como
elemento daquela narrativa anterior a que me referi: como sendo a face visível
e desesperada da injustiça social, por demais muda para a classe média. Os
meios de comunicação de massa, majoritariamente comprometidos com a manutenção
do status quo, primam por separar de forma quase maniqueísta os manifestantes
“do bem” e os “do mal”, procurando descredenciar politicamente ao máximo a
violência como intrínseca à motivação do próprio movimento. Tal como apontei no
texto anterior, a dimensão progressista das manifestações, em seu horizonte
político, fica tendencialmente anulada, sendo substituída por essa humilhação
simbólica pela evidência da violência, por um lado, e pelo sentimento
pseudo-nacionalista de “jovens bem-intencionados que querem um mundo mais justo
para todos nós”.
É preciso compreender a violência nesses protestos como uma
ação que se situa deliberadamente nos limites da política, cuja negatividade
precisa ser resgatada de seu afogamento na areia movediça de sua literalidade
consumada. Seu sentido reside em seus efeitos dispersos, múltiplos e
principalmente colaterais, ao tentar conceber a política como um problema
de fronteira, ou seja, como uma constante interrogação acerca da
legitimidade do que é racionalmente justificado na política. Devido a essa
dupla característica: negatividade explosiva e necessidade de reapropriação
simbólica, toda e qualquer violência desses protestos poderá ser sempre minada
tanto em seu surgimento quanto em sua apropriação imagética e discursiva.
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