Podemos
dizer que o núcleo da teoria psicanalítica é constituído pelo inconsciente como
terceira pessoa, como algo que não reconhecemos como tal, mas que atua em nós. Trata-se
de um agente externo-interno a nós mesmos, de modo que sempre será uma tarefa
reconciliá-lo com nossa consciência. A discrepância dessa alteridade interna
adquire não apenas diversas formas, quanto também diversas intensidades, e,
devido a sua forte heterogeneidade em relação ao plano da consciência, sempre
irá apresentar algum grau de estranheza, de incompatibilidade e recalcitrância perante várias outras porções de nosso psiquismo. A apropriação imagética e
também estética desse estranho se dá na medida em que o mundo exterior parece
conspirar com nossa interioridade, embora isso não mostre conexão imediata,
legível e racional. A superstição, por exemplo, é expressão desse alinhamento
inesperado, ao mesmo tempo desejado e recusado entre o interior e o exterior: o
interno é deixado em sua contingência, em seu acaso, e o exterior é visto como
se conectando a forças e poderes mágicos, místicos e míticos cósmicos.
Em
Hitchcock, temos o estranho como fruto de uma presença ausente ou de uma
ausência presente, que determina o fluxo dos acontecimentos por desconcertar uma lógica plenamente racional, que se cinde sem possibilidade
de resolução direta. A tensão de cada obra se situa nas inaptidões das
soluções, que demandam sempre e de novo outras configurações, gerando
desajustes e por assim em diante. Meu objetivo aqui é apontar alguns aspectos dessa
perspectiva em quatro obras do cineasta: Psicose, Um corpo que cai,
Festim diabólico e Tortura do silêncio. (Trata-se, nesta
postagem, apenas de alguns apontamentos que deverão dar origem a um texto mais
longo e elaborado.)
De
todos esses filmes, em Psicose a ausência e a presença ganham uma tensão
sui generis pelo modo com que elas se cristalizam na mesma pessoa, obrigando
a uma cisão psíquica interna em que reina a violência bruta e incontrolada. O
caráter estrangeiro da mãe é vivido internamente como incompatível com a vida
adulta normal de Norman, pois ambos situam-se em âmbitos psíquicos bastante
divergentes e incompossíveis. O fato de que a pousada estava sempre vazia
durante o filme aponta para uma explicitação metafórica da impossibilidade de
trânsito entre o interno e o externo. Essa incompatibilidade é trazida para o
âmbito da interioridade pelo modo com que o desejo pelas mulheres
implica na fúria da presença materna incorporada e tornada violenta. A
tensão do filme consiste em mostrar o quanto essa divisão interna impede todo
contato harmônico e racionalmente possível com o exterior, de tal forma que
todas as pessoas que se aproximam de Norman serão mortas, rejeitadas
violentamente. Todas elas significam, de alguma forma, a ativação do que a
presença ausente da mãe tem de mais insuportavelmente forte e desejado, de
forma que atração e repulsa resultam na anulação radical da alteridade
externa.
A
presença da mãe ausente impossibilita Norman de ser mais do que ele mesmo, para
poder transitar com o mundo exterior. De certa forma, podemos dizer que Norman
não consegue ausentar-se de si mesmo para acolher a diferença do outro, pois
essa diferença já foi completamente saturada por essa ausência presente da mãe. Por mais paradoxal que seja, essa ocupação plena e violenta da mãe se dá
pelo fato de ela estar presente como um ser ausente, fragmentário e parcial. Se
ela existisse em sua inteireza simbólica, sua força de atração e repulsa seria
menos invasiva, pois essa completude indicaria um grau de resolução mais, por
assim dizer, satisfatório para o equilíbrio entre os diversos estratos
psíquicos e destes para com a realidade exterior.
Embora
toda a trama do filme Um corpo que cai se dê em relação a um
assassinato, muito do interesse do enredo vai girar ao redor do quanto
Madeleine se identificava com Carola, embora não se apercebesse disso. Ela age
incorporando uma outra pessoa que está ausente, através de atos em que a própria
consciência de seu caráter substitutivo também está ausente, substituída pela
presença concreta de ações indefinidamente repetidas. Depois de presenciar o
suposto suicídio de Madeleine, John vai à procura de uma substituta para ela, e
é através dessa duplicidade que, enfim, descobrirá a verdade do assassinato. Note-se que ele então passa a procurar um duplo para alguém que
encarnava a duplicidade de um ser ausente, e me parece claro que o sentido
estético da articulação do filme consiste em nos fazer crer que é esta miragem
de espelhos infinitamente rebatidos uns nos outros que estimulava não apenas a
curiosidade de John, mas todo seu investimento afetivo/erótico. De forma análoga a Psicose,
é a irresolução entre presença e ausência, ou melhor, sua imbricação vertiginosa,
que é a mola propulsora do entrelaçamento dos fatos da narrativa.
Toda
a trama será inserida entre a queda de dois corpos: a que se dá no início, do
colega policial de John, e a da esposa de seu amigo, que ele pensava ser a
própria Madeleine. Embora o nome português descreva o que confere compreensão
ao filme, o título original, Vertigo (= vertigem), aponta para o que é
mais relevante em termos de sentido estético da obra, pelo fato de que a fobia
de altura se manifestava como vertigem, que é propriamente aquela circunstância
em que estamos no limite entre referência e ausência total dela. De certa
forma, nós, como espectadores, experimentamos essa relação de vertigem nos
processos de identificação, substituição, encontro e morte que se alternam
incessantemente ao longo do filme.
Em
Festim diabólico existe a explicitação da presença de uma vida ausente
cristalizada em cadáver colocado bem abaixo da mesa de uma festa. De forma
análoga a como a mãe de Norman (em Psicose) por assim dizer invadiu e
colonizou seu psiquismo, este corpo que morreu (em Festim) persiste com
sua marca de violência em um momento de celebração, de tal forma que esta
poderia ser tomada como a expressão direta de um sadismo que insiste em
situar-se na iminência de sua revelação (aproximando-o de seu oposto, o
masoquismo). O ausente se torna presente no tensionamento de sua evidência
criminosa. Embora o comportamento de Philipp tenha tornado um tanto óbvia sua
culpa pelo assassinato, isso tem o papel preciso na narrativa de colocar
em evidência essa situação-limite entre ausência e a presença na figura de uma
pessoa assassinada.
Se
essa contradição entre ausência e presença em Festim diabólico é
corporificada na exterioridade do corpo do cadáver, em A tortura do
silêncio essa contradição é completamente interiorizada, e caminha
na direção oposta. Enquanto em Festim diabólico essa dualidade se situa
no âmbito vil e baixo do sadismo, em A tortura do silêncio temos a elevação
sublime da inteireza de caráter do padre Logan do início ao fim. Podemos
dizer que ele interioriza esta ausência como um fato presente de consciência a
ser colocado como veículo (também) para uma celebração, mas agora de sua
grandeza moral e religiosa. Essa interiorização, entretanto, será rompida pelo
fato de que a resolução final da trama será dada pelo surto de consciência de
Alma e o desespero de Keller. Uma vez que o padre Logan não hesitará em sua
convicção moral, a tensão da ambiguidade entre ausência e presença será
resolvida, então, por meio de ações das outras pessoas.
A
partir de caracterizações gerais psicanalíticas, é interessante pensar que que
a mescla não resolvida entre a ausência e presença resulta na cisão
psicótica no primeiro filme, na obsessividade cognitiva no segundo, na perversão sádica, no terceiro, e na sublimação
moral, no quarto. Em cada caso vemos a tensão da narrativa aumentar
proporcionalmente a como cada personagem se vê invocado a lidar com a presença
do outro. Em Psicose, o desejo de Norman pelas mulheres é esse estopim
que faz explodir a violência da maternidade incorporada em seu teor
fragmentário; em Um corpo que cai, é a fantasia obsessiva investigadora
de John que faz conectar a verdade de seu desejo e a verdade objetiva do
mundo; em Festim diabólico, é o trânsito absurdamente sádico e frio, bem
como manipulador e cínico, que torna a iminência de punição a chave do registro
do vínculo de alteridade; em A tortura do silêncio, é a demanda sublime
de consistência moral perante a afronta vinda da baixeza dos homens que sustenta a tensão
entre o interior e o exterior. — Muito da mestria cinematográfica de Hitchcock
consiste, nesse panorama, no trânsito entre os diversos planos descritivos de
interioridade e exterioridade, de cisão e convergência, de colocação pontual e
perspectiva do todo, e de diversas outras polaridades dentro de toda a trama
narrativa.