Hoje gostaria de fazer uma análise do conto "Uns
braços", de Machado de Assis. Caso você não o conheça, leia-o aqui.
O princípio geral de composição da narrativa é a
convergência de dois planos de abrangência e nucleação, um por assim dizer
horizontal e outro vertical, que se encontram ao se tocarem no ápice da trama
dos fatos, para voltarem a se separar, mas ainda entrelaçados. A
horizontalidade se daria na correlação entre as vicissitudes da vida econômica
e social em contraste com a singularidade da percepção de mundo individual. A
verticalidade, por sua vez, seria traçada pelos nexos necessários das relações
de amor e a gratuidade do sensível/sensual/sexual. A partir da vinculação entre
esses dois vetores, depreende-se certa concepção de mundo plasmada
literariamente através do significado do amor em uma sociedade que ainda estava
em uma fase inicial de conceber uma cisão tensa entre as esferas da
subjetividade, particularizada, e da socialização capitalista, cada vez mais
universal.
Inácio nos é apresentado como quem sai de uma família-afeto
para fazer parte de uma família-capital. Esse deslocamento se dá sob o
princípio de agregação de valor à sua individualidade, valor propriamente
capitalista, ou seja, para aprender um ofício mais valorizado economicamente.
Não se trata apenas de um estágio, pois o rapaz começa a integrar um outro
núcleo familiar, passando a se sentir um estrangeiro, um imigrante em um país
mais rico que cobra asperamente pelas benesses do aprendizado de seu modo de
ser mais avançado economicamente. Já desde o início, porém, vemos a relutância
da adequação a este meio, desde um aspecto mais por assim dizer fisiológico,
como do fato de dormir muito, até a indisposição para com a agressividade
rabugenta de seu pseudo-padrasto. Não é difícil concluir que Inácio estava se
"vendendo", ou renunciando a uma família-afeto para comprar, e na
verdade por decisão de seu pai, um posicionamento sócio-econômico mais elevado.
Ocorre que esse contrato estava sendo firmado no momento em que ele ainda era
jovem demais, pois sua percepção das agruras das relações extra-familiares como
preço necessário para o sucesso econômico não estava suficientemente firmada. E
tanto era jovem demais (uma criança?) que "sim, ainda pode apanhar".
Essa situação descreve, claramente, o contexto de um rito
de passagem, de modo que a família-afeto representa a nucleação individual,
onde o personagem passou sua infância, e a família-capital configura uma
promessa de integração na sociedade capitalista mais abrangente. Esse segundo
núcleo familiar, então, apresenta uma mescla entre a família-afeto e a
sociedade-capital, e sua especificidade como um nódulo heterogêneo da
individualidade vai ditar os rumos da narrativa: Borges é um patrão-pai e
Severina é uma mulher-mãe. A dupla caracterização do primeiro já fica
imediatamente clara, mas a da segunda também, em virtude do fato de que a
protagonista logo no início surge como minimizando a agressividade e a rudeza
de seu companheiro, ou seja, em uma atitude tipicamente materna, ao mesmo tempo
em que sabemos que não possui vínculo parental nenhum com Inácio, além de não
ter idade suficiente para ser sua mãe.
Se Inácio saiu de uma família-afeto e emigrou para uma
família-capital, vai descobrir nesta uma outra fonte de afeto, o qual aparece
como marca de sua saída da primeira nucleação familiar: o caráter estrangeiro,
áspero e "vendido" da liberalidade quase bélica da sociedade
economicamente estruturada contém na rede de suas contingências o espaço
necessário para a emergência de um vínculo afetivo substancialmente novo.
Importa salientar a heterogeneidade entre o acaso do vínculo afetivo e a
necessidade imperiosa, ditada pelo plano de progresso econômico, pois é no
encontro dessa polaridade que passo a falar daquela verticalidade a que me
referi acima.
Em meio às vicissitudes do rito de passagem capitalista
abriu-se um parêntese pelos braços alvos e sedutores de dona Severina. A
fixação quase fetichista de Inácio é marcada pela concretude sensível da cor,
das formas e dos movimentos dos braços, momento em que o objeto de seu
desejo/prazer se mostra na gratuidade de seu ser-parcial. O narrador não recua
em mostrar um investimento afetivo específico, ou seja, não dirigido a
totalidade da mulher Severina. Essa atitude voyerista é um ingrediente
importante, pois demonstra a outra face do rito de passagem de Inácio, pois,
agora, é ele que se "vende" de forma mais íntima, uma vez que, não
dando importância à seu progresso sócio-econômico, suporta a agressividade de
Borges para poder contemplar três vezes por dia os braços de dona Severina. Que
estes fossem sua tenda moral de repouso qualifica propriamente a
ambigüidade não-resolvida entre valer e não valer, entre gozo e desconforto,
entre estímulo e recusa.
Os dois protagonistas são estrangeiros um para outro,
confabulando sobre a intenção alheia através da materialidade dos pequenos
gestos, tomados como signos e indícios de desejos. Embora o narrador se esforce
por dizer que a nudez dos braços da protagonista era devida ao fato de que todos
os vestidos de manga comprida teriam se acabado, qualquer leitor pode se
perguntar por que ela não comprou outros, uma vez que seu companheiro tinha um
bom salário. Severina, ainda jovem, queria ser não apenas vista, mas apreciada,
e exprimia isso na evidência sensual de seus braços. Que os olhares e atitudes
de Inácio pudessem revelar um desejo por ela foi objeto de investigação do modo
que o foram pelo fato de que ela gostaria de se perceber como desejada através
da gratuidade do desejo sexual de um adolescente. A dupla impossibilidade de um
tal desejo, tanto por vir de "uma criança" quanto de configurar um
leve adultério, é, assim, emoldurada pela percepção narcísica da protagonista,
pelo gozo da afirmação de sua individualidade ao jogar com a gratuidade
transgressora do vínculo afetivo e com a concretude sensível/sensual que lhe
serve de energia de ativação e moeda de troca das mensagens lascivas.
A cumplicidade recíproca continuou mediada pela distância no
momento de um beijo que acontece dentro e fora do sonho, sem que as duas
realidades se encontrassem na percepção de Inácio. Continuou mediada também
pela consciência culpada de dona Severina, que passou a ter um medo
incontrolável de seu próprio desejo, o que se agravava enormemente pela
incerteza de se Inácio estava mesmo dormindo. Embora o narrador não nos tenha
fornecido indicações claras sobre a motivação da saída de Inácio, embora isso
tenha sido prometido, parece-me claro que Borges o devolveu à sua família por
alguma fala de sua companheira. Nesse cenário, vemos que o romantismo do conto
é entrecortado, do início ao fim, pelas tensões, pelos pontos de parada e
avanço na correlação entre o micro e o macro, entre a singularização sensível e
a percepção de si em uma totalidade, como pessoa e como ser social, entre a
mesquinhez de interesses econômicos e de posicionamento social e a sublimidade
de um desejo pautado pela sensualidade de um par de braços.
A partir desse panorama ambíguo e contraditório, podemos
especular um pouco sobre uma face da dialética do amor. Tomado em sua figuração
romântica, caracterizada pela rede dos vínculos entre pessoas que se
complementam e dialogam como seres totais, o amor pode ser visto como
trajetória ascendente perante a imediatidade do gozo com o que é parcial, centrado
muitas vezes de forma fetichizada em um aspecto corporal e lascivo. No entanto,
muito do que confere substância ao amor reside no núcleo de não-resolução entre
o plano dos vínculos necessários e totalizados entre as pessoas e a
parcialidade do que é gratuito e contingente. Se o sublime é caracterizado por
uma situação limite, por algo que nos coloca perante a iminência da perda de
referencial, então poderíamos falar de uma espécie de entropia deste
impacto de sublimidade, que é a marca da relação entre a parcialidade e a
totalidade do desejo, caminhando rumo à dissolução de todas essas tensões em um
plano de articulação universal e abrangente. Levando em conta que a entropia é
a medida do quanto a energia útil de um sistema é perdida ao longo do tempo,
passando de organizada e aproveitável para caótica e não-aproveitável, é como
se a elevação moral e societária do amor romântico produzisse uma
espécie decaimento entrópico da força explosiva que anima as
contradições nucleares entre a parcialidade sexual e a totalização amorosa.
Para nossa sorte, essa entropia, diferente da que ocorre nos fenômenos físicos,
não é irreversível.
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