Nas provas de História de certos vestibulares ou de
conclusão do ensino médio, deve causar certa estranheza aos estudantes a
inserção de questões sobre política e economia atuais. Pode soar um tanto
duvidoso se, por exemplo, o atual escândalo da espionagem generalizada feita
pelo governo dos EUA seja um dos temas, considerando que tal acontecimento
ainda está em curso, e que nem sabemos da importância que lhe será conferida
daqui a cem anos, quando então deverá contar ou não como um fato histórico
relevante. A resposta é conhecida de todos nós: história não é apenas o já
reconhecido em um tempo passado, mas também o que nos constitui atualmente, o
que fazemos, praticamos e construímos no horizonte mais restrito ou mais
ampliado da civilização e da cultura. Não se trata apenas de um saber sobre
o que já se realizou, mas também de uma prática, de concepções de mundo que se
refazem e se alternam constantemente. Nesse sentido, habitamos continuamente o
palco da história, e nossos passos são as vias para seu alargamento.
Embora esta concepção possa ser reconhecida imediatamente
como válida, entretanto sua eficácia parece diminuir nas mentes quando deve ser
colocada em jogo em alguns momentos decisivos. Quero comentar duas situações
típicas desse estado de coisas: (1) a criação de neologismos, principalmente no
trabalho de tradução de textos, (2) e a construção de prédios de salas de aula
em universidades.
1) A tarefa de tradução é especialmente árdua e delicada,
não apenas devido às dificuldades inerentes a se encontrarem boas
correspondências entre palavras, expressões idiomáticas e conceitos entre os
dois idiomas, mas fundamentalmente pela consciência de que não haverá acoplagem
perfeita. A variação de significados de um mesmo vocábulo em virtude de suas
conotações diferenciadas em cada contexto, por exemplo, impede ou dificulta
enormemente a manutenção de uma mesma palavra no idioma de chegada, perdendo-se
algo do senso de continuidade. Esses e vários outros problemas demandam
soluções criativas, de modo a contornar a solidez e a inércia de significações
e correlações sintáticas das duas línguas. Na medida em que o leque de
significados de uma palavra do idioma original difere das palavras já
existentes no idioma de chegada, tem-se a ideia de forjar uma nova palavra, um
neologismo, para tornar possível a tradução.
Está muito claro que esta solução deve ser submetida a um
exame minucioso, para que não simplesmente se multipliquem novos vocábulos,
tornando o texto artificial, pedante e excessivamente técnico. Por outro lado,
algumas vezes percebemos uma resistência excessiva a se adotarem palavras que
já constam até mesmo nos dicionários, mas que foram introduzidos recentemente.
Nesses momentos, há que se questionar: quanto tempo será necessário até que uma
palavra não seja mais um neologismo, apesar de já empregada por várias pessoas,
seja no âmbito técnico especializado ou coloquialmente? Muitas palavras que
denotam conceitos psicanalíticos, por exemplo, foram criadas em virtude da
necessidade de apreensão conceitual de fenômenos que não haviam sido ainda
objetos de estudo, como narcisismo, psicose, sadismo, masoquismo etc. Todos
esses vocábulos, com pouco mais de 100 anos de existência, podem ser
considerados “ainda” neologismos? É muito evidente que não, mas durante cerca
de três ou quatro décadas o foram, ganhando sua cidadania no âmbito da teoria
psicanalítica devido à necessidade intrínseca de lidar com os fenômenos a que
se referem.
Na escolha de termos a serem usados ao se traduzir, não
apenas o peso da tradição do uso de determinados vocábulos não é decisivo,
quanto também pode contar como um fator negativo. Isso se dá em virtude
do fato de sua ancestralidade carregar uma série de associações conotativas que
funcionam como obstáculo a se pensar de forma diferente, que é
precisamente o que se quer como resultado de uma nova aposta teórica. Nesses
momentos, é preciso cautela, mas também uma boa dose de confiança na
possibilidade de construção histórica de novas concepções de mundo.
2) A vida num ambiente universitário tem diversas
características que a aproximam da que se tem em uma cidade. Há vários prédios,
ruas, agências bancárias, restaurantes, espaços para shows, cinemas, e até
mesmo uma prefeitura (cada campus universitário tem a sua). Em virtude de toda
essa circulação de seus “habitantes”, é evidente que cada pessoa tenda a se
reconhecer nos espaços que frequenta, não apenas em virtude do tempo em que
ocupa tais espaços, mas também por sua identificação com todos aqueles que
vieram antes. “Nesse DA já passaram várias gerações de estudantes, que
enfrentaram a repressão ditatorial, lutaram pelas diretas já e construíram a
identidade estudantil de nossa universidade”: essa frase pode condensar muito
da percepção de envolvimento histórico de um estudante com o ambiente da faculdade
onde estuda.
Ocorre, porém, que os espaços universitários precisam se
expandir. Eles necessitam não apenas de ampliações dos prédios já existentes,
como de outros edifícios e até mesmo de novos campi. Nesse momento,
entra em jogo, mais uma vez, a relutância de perceber a si mesmo como tendo o
papel de construir a história, momento em que é preciso renunciar ao prazer de
se alojar em um espaço já saturado de identidade construída historicamente. —
Atualmente vivencio uma situação como essa. A faculdade em que leciono (FAFICH,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG) ganhou um novo prédio, com
instalações modernas, auditórios muito bem equipados, tendo salas de aula
amplas e quase todas com projetores multimídia. Diversos alunos, entretanto,
têm se mostrado relutantes a assistir às aulas nesse novo prédio, usando como
justificativa, entre outras coisas, a ausência de uma cantina e de bancos nos
corredores e no pátio para aguardar o início das aulas, mas o argumento que me
chamou mais a atenção foi o de que “este prédio não possui história”. Todos os
outros devem realmente ser levados em consideração, mas eles têm em comum a
característica de poderem ser respondidos através de alguma medida concreta,
como instalar uma lanchonete, fazer licitação para compra dos bancos etc. O
último deles, entretanto, somente pode ser respondido com aquela mesma noção de
história que apontamos no início de nosso texto. — É especialmente saboroso
recordar que quando o prédio atual da FAFICH foi inaugurado, em 1990, muitas vozes
se levantaram contra sua ocupação. Dentre as diversas justificativas para a
recusa, você é capaz de imaginar qual era a mais falada?
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