No dia 8 de dezembro de 2013, houve mais uma violenta briga
entre torcidas em um estádio de futebol no Brasil, desta vez durante o jogo
entre Atlético/PR e Vasco, com cenas de barbárie e selvageria
impressionantes, em que vários torcedores foram agredidos brutalmente,
recebendo socos e pontapés na cabeça quando já estavam inconscientes, sofrendo
agressões com canos e paus sem poder oferecer nenhuma resistência. Embora a
violência nos estádios no Brasil seja relativamente usual, a brutalidade deste
caso inspira uma análise mais longa.

A pergunta mais geral a ser considerada é: em que medida a
instituição futebol se liga de forma interna a manifestações de violência tal
como vemos praticada por torcedores dentro e fora dos campos? (Aqui vamos
abstrair metodologicamente da violência entre os jogadores.) Por mais que possa
soar surpreendente para a maioria de nós, incluindo a mim, algumas pessoas disseram,
ao comentar o episódio, que o futebol não tem nada a ver (sic) com essa
selvageria que presenciamos regularmente nos estádios.
Uma das explicações deste posicionamento emprega a
constatação de que existe violência acontecendo nesse exato instante em todas
as partes do Brasil, com dezenas de assassinatos todos os dias, centenas de
estupros, milhares de assaltos etc. A pancadaria nos estádios seria apenas mais
uma forma de violência, devendo ser reprimida, tal como todas as outras, em seu
campo de atuação próprio: mecanismos de controle de quem pertence a torcidas
organizadas (pois, por mais que elas se envolvam em atos de violência, não
deveriam ser proibidas completamente, segundo tal perspectiva), colocação de
contingente policial significativo para inibir as agressões, reforço nas
divisórias entre as torcidas etc.
Outra explicação se apoia no argumento de que, considerando
que a quase totalidade dos atos de violência são praticados por homens, o
problema está em uma concepção radicalmente equivocada de masculinidade, que a
associa à afirmação violenta de si através da agressão ao outro. Dado que, como
é evidente, existem machões carentes de auto-afirmação violenta em toda parte:
bares, churrascos, bailes funk, trânsito, ou onde quer que haja uma aglomeração
de “machos”, logo a explosão de violência nos estádios é, mais uma vez, apenas um
dos palcos de manifestação deste machismo hétero- e auto-destrutivo.
Embora essas duas vertentes se apoiem em considerações
factuais verdadeiras (generalidade da ocorrência de violência e concepção
deturpada de masculinidade), equivocam-se por desconsiderar a especificidade
com que a instituição futebol, em vários de seus agentes e palcos de atuação,
somente tem sua força devido a uma forma sui generis de absorver,
canalizar e fornecer as vias de escoamento para uma energia volitiva individual
e coletiva. Cada uma das instituições culturais em uma civilização produz uma
oferta de satisfação e cobra um preço de seus adeptos que deve ser considerada
em uma dinâmica própria, que a distingue, quando lida em um patamar de análise,
de todas as outras. Publicações semanais para meninas adolescentes têm uma
lógica simbólica e cultural radicalmente diferente de uma luta de boxe, que se
diferencia da prática da ciência, que por sua vez é bastante distinta do que
oferece a indústria pornográfica etc. Nesse sentido, não é pelo fato de haver
vários focos de violência que todas eles ocorram segundo uma mesma lógica de
incitação, favorecimento e incapacidade repressiva. Por outro lado, é inegável
que as agressões nos estádios se ligam intimamente a uma masculinidade completamente
enviesada, tosca e totalmente não-crítica, mas esse mesmo machismo pode se dar
de diversas formas e em diversos contextos. Mais uma vez, é necessário
investigar a dinâmica simbólica de drenagem deste machismo nessa realidade
cultural determinada. — No que se segue, procurarei fornecer uma concepção
geral do que vejo como significativo na instituição futebol como ligada
intimamente à forma específica de violência tal como vemos ocorrer nos
estádios.
Tradicionalmente, considera-se nos estudos de antropologia
cultural que o esporte competitivo
consiste em uma derivação simbólica do desejo de agressão e de morte do outro.
Em lugar da satisfação literal de agredir e matar, tem-se o prazer mais
abstrato (alguns diriam “sublimado”) de vencer o adversário nos limites das
regras impostas pelo jogo. Esse deslocamento figurado da agressividade fomenta
múltiplas elaborações simbólicas e culturais, que tendem a assumir direções
opostas à de seu ímpeto inicial, propiciando o espaço de celebração do evento
competitivo como espetáculo para todos. Nesse momento, o plano abstrato de
obediência às regras arbitrárias do jogo serve como suporte de um gozo estético, uma vez que talento,
habilidade, perseverança e disciplina podem se exprimir na beleza, elegância e
vivacidade dos lances e jogadas. A própria disposição de se manter dentro das
regras adquire um valor simbólico-ético celebrado como o espírito esportivo, em
que cada pessoa se regozija com a percepção sublime de si como não movida diretamente
pelo desejo de agressão.
(Essa perspectiva — é preciso deixar claro — não inclui
condenação moral ao se dizer que o esporte competitivo proporciona um gozo com
a morte simbólica do outro. Na verdade, trata-se de uma troca de valores
afetivos através dessa moeda comum do jogo como espaço de participação
franqueada a todos que se dispõem a ele.)
Os esportes coletivos, como o futebol, agregam uma
característica especial a todo esse cenário, pois, tal como nos diz Johan
Huizinga em seu famoso livro Homo ludens, eles derivam do espírito da
guerra. Trata-se de uma característica muito relevante. Tudo o que dissemos da
drenagem simbólica da agressividade adquire uma nova feição, ligada à
psicologia das multidões, segundo as formulações semifinais do teórico francês
Gustave Le Bon, estudadas, entre outros, por Sigmund Freud. O sugestionamento e
reforço recíproco para atitudes passionais e extremas, a diminuição da força do
senso crítico para estabelecer mediações racionais, o abandono de valores e
posturas individuais em prol do gozo de se mesclar às decisões coletivas (por
mais estapafúrdias que sejam), a infantilização generalizada dos pontos de
vista — tudo isso e várias outras características demonstram com especial
clareza que podemos falar, junto com aqueles autores, da diferença de uma
psicologia de grupo em contraste com a individual.
Considerando a dinâmica vertiginosa de massificação do
esporte tal como presenciamos desde meados do século XX, o adensamento
simbólico da coletividade na disputa de um jogo de futebol, ele mesmo coletivo,
assistido por uma multidão, tanto dentro quanto fora dos estádios, ganha
contornos dramáticos. Todo esse estado de coisas absorve e canaliza um desejo
de consistência simbólica que, nas formas de vida preponderantes nas
sociedades europeias e das Américas, mostra-se cronicamente frustrado
devido à fraqueza atual de instâncias representativas outrora robustas, como as
grandes religiões. Se aliarmos a isso as desilusões concretas da vida econômica
e da representatividade política, temos um complexo psíquico altamente
explosivo.
Intimamente associados a essa convergência de massa no
movimento de coletivização do esporte como espetáculo, temos os traços muito
claros de atitudes semi-, pseudo- ou proto-religiosas. A idolatria dos clubes
de futebol e de seus jogadores não é de forma alguma apenas uma figura de
linguagem dos estudos antropológicos para exprimir a dimensão pseudo-religiosa
destes fenômenos. O fanatismo dos torcedores, com sua devoção ritualística a
tudo que ocorre com seus times, dispendendo grandes recursos para ver
pessoalmente os jogos a centenas de quilômetros de casa, muitas vezes pagando
seu “dízimo” mensalmente aos clubes, celebrando em êxtase a vitória em um
campeonato como se significasse uma espécie de salvação, ou lamentando o
rebaixamento para divisões inferiores como se fosse uma profunda desonra (ou se
regozijando lauta e fartamente quando isso se dá com o adversário) — tudo isso
demonstra a impregnação do esporte com o espírito da ritualística religiosa.
Pode-se falar até mesmo de raízes mais arcaicas, como o totemismo, em
que os clãs se definiam por serem descendentes de um totem, normalmente um
animal. “Ser” um touro, um peixe, um porco significava partilhar de um sangue
comum, de um lastro intra-natural para os vínculos tribais. Que as torcidas
gostem de se denominar através de animais que simbolizam seus clubes pode
parecer algo inócuo, mas de um ponto de vista antropológico não o é.
Em termos gerais, esta dimensão proto-religiosa do esporte
nos mostra que a mesma energia psíquica que move à idolatria e submissão aos
ícones é descarregada com fúria contra todos aqueles que idolatram outros “deuses”.
Tal como Freud sublinhou, toda religião é uma religião do amor para aqueles que
estão nela, e é potencialmente uma religião de ódio contra os que estão fora
dela. O gozo de pertencer a uma mesma derivação totêmica é também satisfeito ao
se marcar com violência todos os que não participam desta irmandade. Afirmar a
força e realidade efetiva do próprio ídolo está intimamente associado a negar
as mesmas coisas ao ídolo alheio. — Tudo isso, deve-se salientar, é considerado
em termos de registro histórico macro
da realidade da psicologia dos grupos e massas, pois é óbvio que nem todos os
que participam de um grupo exercem violência contra o outro; a questão que nos
move, no entanto, mais especificamente, é: por que a dinâmica de grupo do
futebol como espetáculo de massa cataliza formas de violência des-simbolizada,
crua, tal como ocorrem frequentemente dentro e fora dos estádios?
No que concerne à mutação simbólica da canalização cultural
dos afetos, a condição do torcedor como espectador, como quem espera que
tudo aconteça para então sentir alegria ou tristeza, é de crucial importância.
Tal como disse Theodor Adorno, o esporte praticado tem um significado
substancialmente distinto do apenas assistido, ou seja, como objeto de
consumo. Segundo ele, a prática
esportiva é progressista, pois fomenta a disposição para disciplina, o senso de
trabalho em equipe, a percepção aguçada para aproveitamento de oportunidades, a
melhora dos reflexos e do condicionamento físico etc. O esporte como espetáculo, por sua vez, tende a gerar
preguiça, resignação aos fatos, animosidade, ressentimento e intrigas. De um
ponto de vista psicanalítico (não empregado por Adorno nesse momento), vemos
que o apenas-espectador está duplamente afastado do substrato afetivo
que nutre o esporte, pois não atua concretamente para o alcance simbólico da
vitória, participando dela de forma inerte, passiva, ou no máximo com seus
gritos, danças ritualísticas, fogos e outras manifestações ruidosas. Não é
difícil concluir que isso pode — e em
termos de psicologia de grupo parece inevitável que ocorra em alguma (grande)
medida — convergir na figuração (inconsciente) de si por parte do torcedor como
submetido a uma castração simbólica, ao ter que tão-somente contemplar,
resignado, o gozo real-simbólico do outro, ou lamentar, também de forma
resignada (pois é necessário ter a suficiente elevação de espírito esportivo),
a morte simbólica de seu avatar. Estamos diante da experiência continuada de um
déficit simbólico que se dá por um exercício de manutenção à distância
do que conta efetivamente como um mecanismo de drenagem cultural de determinado
plano afetivo (esse mecanismo é a prática
do esporte, o enfrentamento real do outro). Se isso se soma a uma insatisfação
econômica e política grave como no Brasil (embora isto não seja necessário em
vários outros países, como bem nos mostravam os violentos torcedores ingleses,
felizmente hoje em dia neutralizados por uma boa política de contenção da
violência), então causa alguma especial surpresa que a agressividade e o desejo
de morte aflorem violentamente como um desejo imediato de violência?
Por fim, uma última questão: em virtude desta violência
crua, deveríamos condenar a instituição futebol em sua totalidade? Para mim é
evidente que não. Um contingente muito grande de pessoas não apenas gosta mas
carece intimamente dessas formas de canalização simbólica de desejos
agressivos, e, na medida em que isso se mantém neste patamar de abstração
simbólica, não cabe um juízo definitivo contra. A grande questão reside em que
o preço que estamos pagando para fornecer esta satisfação é socialmente alto,
não apenas com essa explosões de violência bruta, quanto também pelo fanatismo
dos torcedores, que gera o abastecimento milionário dos cofres dos clubes de
futebol e das empresas de telecomunicação, e ainda pela manutenção de um clima
de animosidade entre os torcedores onde quer que a realidade futebol se insira
na vida cotidiana. É necessário implementar urgentemente estratégias de
contenção da violência bruta, tanto dentro quanto fora dos estádios, mas o
sucesso relativo dessa empreitada não nos dispensa de refletir de forma
bastante crítica sobre a raiz simbólica dessa agressividade.
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