Toda atividade de crítica envolve valores, pois é sempre
exercida com base em parâmetros, modelos e critérios que estabelecem diferenças
a partir das quais juízos serão emitidos. Trata-se de julgamentos de diversas
ordens, que pautam o nosso olhar acerca da originalidade, do valor cultural, da
importância societária, do teor ético, do significado político e uma série de
outros. Quando se fala em crítica de arte, um dos elementos fundamentais
a serem considerados liga-se à suposta falta de objetividade nos critérios, uma
vez que se percebe claramente que entre uma avaliação médica, por exemplo, e da
qualidade artística de uma obra temos uma diferença quase intransponível.
Considerando que, neste segundo caso, a dimensão intuitiva, do próprio
sentimento, das preferências pessoais, contém um peso muito grande, não é
difícil se chegar à conclusão (com a qual não concordo) de que o melhor seria
deixar para cada um a responsabilidade de seu próprio juízo sobre questões
estéticas e artísticas. — Nesse cenário, como argumentar a favor da necessidade
de uma crítica de arte, e, ao mesmo tempo, da legitimidade de sua pretensão a
ser tomada de forma não-relativista, almejando certa objetividade, mesmo que
não seja matemática e científica?
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Jean-Michel Basquiat. Bautismo |
A recusa de qualquer tipo de objetividade para uma crítica
de arte funda-se em larga medida na atitude de partir de sua própria
perspectiva pessoal, de seu próprio gosto, como algo que, mesmo não sendo
tomado de forma absoluta em sentido pleno, não é aceito como relativo
tem um sentido mais forte. Mesmo que aceitemos que nossos juízos de
preferência somente façam sentido dentro de um contexto em que aprendemos a
dizer o que é bom e ruim, uma forte dose de narcisismo nos compele
sempre a pensar que fomos suficientemente autoconscientes o bastante para
ultrapassar a cegueira e ingenuidade perante isso que não apenas nos
condicionou, mas ainda o faz em grande medida. É de uma dificuldade quase
intransponível admitir que nosso prazer
signifique a confirmação do quanto nosso gosto
foi moldado pelos exemplos, modelos e paradigmas do que seja bom, mediano,
aceitável, ruim, de mau gosto, kitsch etc. Essa admissão significa um exercício
de alteridade e de demissão de si mesmo como autodeterminado pouco condizente
com o culto da própria personalidade no registro das sociedades individualistas
contemporâneas. O curioso, neste cenário, é que quanto mais nós nos aferramos a
esta auto-determinação, desconsiderando o teor relativo de nossos juízos, mais
precisamos ser relativistas no que concerne à crítica de arte, uma vez que o
caráter auto-fundado de nossos juízos se nutre da admissão do valor, também
algo absoluto, dos julgamentos alheios.
A crítica de arte nunca se estabelece a partir de princípios
auto-centrados. Trata-se, na verdade, de um processo muito próximo do
jurisprudencial no direito. Por mais que nossos critérios de valor não sejam
objetivamente válidos, entretanto eles podem agregar validade ao longo de suas
relações recíprocas, percebidas no desdobramento da história da arte, da
filosofia estética, e da tradição da própria crítica. Podemos falar de um
processo de sedimentação de valores que pautam sempre e de novo aquilo que
deverá ser visto em relação a novos produtos. Não se trata de dizer que devamos
sempre considerar a tradição como aquilo que estabelece critérios de validade
incontestáveis, mas sim que todo juízo particular somente faz sentido no
horizonte de uma comunidade de julgamentos, de pessoas que julgam não só a
partir de sua própria perspectiva, mas em contraste, confronto, diálogo,
complementação, para com os outros. Nada no horizonte artístico se estabelece
em sua ipseidade, singularidade, radical. Todo lance originário e novo somente
tem sua importância em sua diferença pelo modo com que se defronta com o que é
igual, com o que se homogeneizou devido à sedimentação dos olhares em relação
aos objetos artísticos, às expectativas do público, a nosso discurso sobre
arte, ao afastamento de questões mais abstratas perante o modo com que vemos e
percebemos concretamente os objetos etc.
É precisamente por considerar este enredamento do discurso
particular em um complexo mais geral e articulado historicamente, que podemos
instituir a racionalidade da crítica de arte como o que impulsiona novos
valores em contraste com o que já se esperava ao longo de experiências
pretéritas. Em nenhum momento o que é esperado no âmbito artístico irá se
satisfazer com o nivelamento já estabelecido historicamente. O que marca
essencialmente a esfera estética é o fato de valorizar a instauração de
significados e valores novos, que desafiam o olhar já solidificado da tradição
historicamente vivenciada. Por mais que um artista seja reconhecido em sua
excelência de composição musical, por exemplo, desde pelo menos o renascimento a
originalidade foi considerada como o que agrega uma vivacidade incapaz de ser
alcançada no interior de uma excelência já reconhecida como tal. O grande
problema da arte contemporânea é fato de que ela sempre se colocou como um problema, ou seja, como algo que se
lança à nossa frente em descompasso radical, fundamental, perante o que há de
mais sólido em nossos juízos coletivamente orientados. Theodor Adorno tem uma
expressão muito interessante para isso, quando diz que ao longo da história da
arte, cada novo movimento negou o anterior com uma proposta poético-artística
diferenciada. O renascimento foi negado pelo maneirismo, que por sua vez foi
negado pelo barroco, que sofreu também a negação pelo classicismo, sendo este
também visto como ultrapassado pelo romantismo etc. A partir do impressionismo,
entretanto, não se nega apenas um movimento anterior, mas o próprio sentido de
tradição em sua totalidade, em seu movimento de solidificação histórica como
tal. Isto leva Adorno a dizer que a percepção de que a arte está em crise
acompanha a modernidade como não apenas um elemento dentre outros, mas sim como
algo que lhe é essencial.
A palavra “crise” tem a mesma origem da palavra “crítica”,
que é o verbo grego crinein, cujo
significado mais originário é o de separar, tendo derivado para critério, como
aquilo a partir do qual se podem separar as coisas em virtude de determinados
valores, como bom e ruim, verdadeiro e falso, original e cópia etc. Na medida
em que está em crise, podemos dizer
que a arte contemporânea é sempre crítica,
no sentido de algo que demanda necessariamente uma atitude diferente em relação
àquilo que já experimentamos. Ela demanda um novo posicionamento, em busca de
uma racionalidade que nos capacite a compreender seu sentido para além de duas
possibilidades: ratificação do status quo, ou seja, confirmação da
validade do que já se pensava sobre arte, e a gratuidade radical do que
supostamente pudesse ter validade pela simples colocação de um diferente. Nesse
sentido, a argumentação de Kant sobre o gênio como o talento que torna o
artista aquilo que ele é, possui interesse para nós, pois, segundo o filósofo,
o gênio é marcado pela liberdade em relação às regras preestabelecidas, tendo a
capacidade de inovar, usando livremente elementos que seriam um erro e uma
impropriedade na mão de pessoas com menos talento, como componentes de uma
totalidade substancialmente viva pelo modo com que negam esse ajuste em relação
a regras visualizáveis de forma mais evidente. Por outro lado, porém,
igualmente significativo é que pode haver “absurdos originais”, quando a
diferença em relação às regras já dadas não nos impele a conceber uma regra
nova a partir da diferença que se apresenta, que se coloca como uma aposta de
validade e de significado. Nesse sentido, podemos dizer que a arte
contemporânea trafega em um limite tenso entre o absurdo e o sentido, flertando
sempre com os limites do que este último poderia ser, desafiando o primeiro a
se mostrar frontal- e claramente.
Recorrendo mais uma vez à estética de Adorno, vemos uma
clivagem essencial entre cultura de massa e arte em sentido mais próprio. Esta
última, marcada essencialmente pela necessidade de vender — e isto não apenas
no sentido financeiro e econômico —, protege-se do perigo de não fazer sucesso,
de não ser aceita por milhões de pessoas. Que um filme de produzido em
Hollywood, por exemplo, não dê retorno financeiro para milhões de dólares
gastos em sua produção é algo que ocorre apesar de e contra todas as medidas de
proteção adotadas. A arte, ao contrário, expõe-se, segundo seu próprio
conceito, a partir de sua lei de movimento interno, à possibilidade de
fracasso. Sendo marcada pelo ímpeto de desafiar as leis de nossa percepção
estética, sempre correrá o risco de ser tomada como um absurdo. Assim, de forma
instrutiva por oposição à cultura de massa, seu sucesso econômico, como das
obras de Picasso (que ficou milionário), por exemplo, é algo que se acrescenta
a ela de forma extrínseca, não pautando o exercício de criação e de
configuração do objeto artístico de forma definitória.
Apesar da clareza com que podemos dizer deste contraste
entre a atitude crítico-desafiadora da arte e auto-protetora-conservadora da
cultura de massa, em diversos momentos esta fronteira se mostra bastante
obscura, pelo modo com que a cultura de massa se apropria de elementos “negativos”
da arte, bem como por ser marcada essencialmente pelo avanço nas suas técnicas
de reprodução da realidade, tanto já vivida quanto imaginada nos planos de
ficção científica. Há que se considerar, também, que a cultura de massa se apropria
do que nos choca em nossa sensibilidade puritana, moralizada. A pornografia é
um exemplo muito claro de que a indústria cultural sempre venderá imagens,
signos e valores de ruptura que somente fazem sentido pelo modo com que
desafiam, de no âmbito lúdico e ficcional, valores vividos concretamente no
âmbito da cultura e da sociedade em sua inércia historicamente determinada. É
perfeitamente viável a coexistência de produtos pornográficos e uma moral
puritana, repressora do sexo, em virtude do fato de que a pornografia não
representa uma liberdade sexual em sentido estrito, pois o que ela vende não é
sexo, mas apenas uma manipulação (cínica) de índices e imagens com um apelo
sexual já completamente filtrado por uma mentalidade que quer retirar das
pessoas o gosto com a exigência de lidar com a negatividade do sexo, do desejo,
da recusa, da demanda alheios.
A arte, situando-nos em um horizonte de desafio do sentido
já estabelecido pelo nosso olhar, é crítica e demanda uma crítica discursiva,
de modo a traduzir conceitualmente aquilo que está implicado nestes modos de
desafio de nosso olhar, de nossa percepção, de nossos juízos de gosto. Não só
não existe objetividade científica e matemática para esta tarefa de tradução
conceitual da dimensão crítico-negativa do artístico-estético, quanto ela seria
o oposto daquilo que gostaríamos — e na verdade precisamos — neste horizonte,
uma vez que se trata de estabelecer novos princípios de racionalidade para a
percepção de objetos que se colocam como tendo um valor pelo modo com que negam
nossos princípios de valor já previamente estabelecidos. Que nós devamos
prestar atenção a este movimento e a esta demanda de uma nova racionalidade que
se instaura continuamente — e na verdade a cada objeto artístico contemporâneo
com que nos defrontamos —, isto somente pode ser reconhecido através de uma
longa formação estética cuja existência deveria ser objeto de planejamento
político rigoroso. Ela não se dá simplesmente por convencimento através de ideias
e conceitos assimilados teoricamente. Somente com uma prática, um bom lastro de
conhecimento histórico e uma atitude de frequentação íntima com a arte, naquilo
que ela tem de mais arrojado, original e impactante, somente assim é que visualizamos
uma objetividade cuja lógica consiste precisamente em ultrapassar a demanda de
uma objetividade científica e pautada por aquilo que já aceitamos como válido.