Confesso que tenho uma visão pessimista quanto ao que
podemos avaliar da educação no Brasil. Creio que ela seja ainda, em grande
medida, do tipo “bancária”, e não “dialógica”, tal como Paulo Freire cunhou
esses conceitos. Significa dizer que nosso processo de ensino e aprendizagem
ainda se baseia fundamentalmente na aquisição de conhecimentos por parte dos
alunos, que devem “devolver” (no mais das vezes de forma pouco criativa) este
saber periodicamente através das avaliações. Imagino que nas escolas e
faculdades em nosso país as estratégias educacionais baseadas numa participação
mais substantiva do corpo discente é muito mais exceção do que regra. Além
disso, os momentos em que tal participação se dá acabam fazendo propaganda contrária a ela, ao potencializarem um
efeito ruim, contido na substituição de uma aula expositiva por falas pouco
articuladas, pouco rigorosas, dos alunos. Meu objetivo hoje é menos propor
algum princípio pedagógico novo e mais defender uma forma de condução das aulas
que faça justiça aos princípios da pedagogia de Paulo Freire. Minhas reflexões
tomam como objeto primordialmente cursos de filosofia e ciências humanas no
âmbito universitário, mas creio que possam perfeitamente ser aplicadas no
ensino fundamental e médio.
Embora virtualmente todas as professoras e professores
concordem com a ideia de que o mais significativo no processo de aprendizado é
a capacidade de refletir sobre determinados saberes (e habilidades), a
prática diária conduz incessantemente à percepção de que é necessário
transmitir um conteúdo programático quase sempre muito grande para a carga
horária das disciplinas. Em virtude disso (além de outros fatores), a ênfase na
aquisição de conteúdos expostos pelo professor torna-se, no mais das vezes,
absoluta. — Antes de prosseguir, entretanto, é necessário o reconhecimento
explícito de que dominar determinadas teorias, conceitos e problemas é de
crucial importância em diversos ramos do saber escolar e acadêmico, para que um
progresso intelectual seja consistente. Quando lecionamos para turmas de
períodos avançados da grade curricular sempre passamos pela experiência
frustrante de, ao trabalharmos alguma teoria contemporânea, percebermos que os
alunos demonstram pouco ou nenhum conhecimento de teorias anteriores,
necessárias para avançar no curso. Na medida em que todos esses conhecimentos
apresentam uma alta carga técnica de elaboração conceitual, os docentes são
sistematicamente levados a pensar que seu papel ativo de apresentar, transmitir
e articular de forma rigorosa e clara tais conteúdos é não apenas
indispensável, quanto tende a ser prejudicado pelas estratégias de participação
dos alunos quando o substituem, mesmo que apenas parcialmente.
Apesar da minha crítica inicial ao peso da postura exclusivista
do professor como quem apresenta os conteúdos, não tenho dificuldade nenhuma em
assumir que considero o outro extremo como muito mais prejudicial, a saber: a
transformação de aulas teóricas em um espaço de discussão geral entre alunos
individualmente ou em grupos. Creio que haja formas criativas e progressistas
de trabalhar com discussões em sala, mas, especialmente quando está em jogo um
conteúdo teórico de difícil assimilação, que necessita uma habilidade
específica para fugir de uma percepção de senso comum, a exposição qualificada,
rigorosa e conceitualmente avançada por parte de um professor me parece
insubstituível. Apenas com o propósito de ilustrar o que estou dizendo,
imaginemos o quanto a divisão da turma em apresentação de grupo para discussões
ao longo do semestre seria melhor, em termos de ensino e aprendizado, do que
assistir aos seminários de Michel Foucault, Theodor Adorno, Habermas e outros
teóricos. Note bem: não estou cometendo a insensatez de comparar a mim ou
qualquer outro docente em particular a estes filósofos. Trata-se apenas de
mostrar que, em diversos graus e
formas, o contato com uma exposição rigorosa de conceitos por parte de quem
os domina bem é insubstituível. Essa ideia me parece tão mais acertada quanto
entra em jogo a percepção dos discentes de que a divisão do conteúdo
programático em seminários de alunos se presta tão-somente a substituir o
trabalho do professor. Nesses momentos, o quanto cada aluno aprende ao expor
sua temática acaba sendo perdido todas as outras vezes em que não pôde dialogar
com um exposição mais avançada do que as dos colegas.
Diante deste cenário, parece-me claro que o núcleo do
problema consiste em compatibilizar e tornar harmônicos os princípios da
necessidade de o aluno ter exposições conceituais rigorosas, consistentes e
avançadas, por um lado, e o desiderato de participação ativa não apenas na
construção de seu próprio conhecimento, quanto também na condução do processo
de ensino. Indo direto ao ponto, o que me parece de crucial importância, em uma
disciplina de filosofia e ciências humanas, é que cada aluno tenha se
preparado de forma reflexiva sobre o tema de cada aula. É necessário
eliminar, definitivamente, a possibilidade de os alunos acompanharem como meros
ouvintes cada aula, uma após outra, e estudarem todos os textos faltando dois
ou três dias para a prova. Embora essa prática, obviamente, não seja a única,
minha visão pessimista diz que ocorre em mais de três quartos das vezes. Para
evitar esse tipo de situação, muitos docentes pedem fichamentos, resumos e
outras formas de elaboração dos tópicos e textos estudados. Embora isso
contribua de fato para atenuar o problema, muitas vezes o valor dado para as
atividades é muito pequeno, e elas mesmas são pouco interessantes, podendo ser feitas
de forma mecânica e pouco reflexiva. A estratégia que comecei a adotar em 2013
é a de que todos os alunos apresentem em cada aula duas perguntas com suas
respectivas respostas sobre o tema a ser tratado em aula. Deverão ser
questões que demonstrem a leitura e reflexão, pelo menos em estágio inicial,
sobre algum texto a ser estudado. Além disso, a depender do tamanho da turma,
certa quantidade de alunos serão sorteados para ler em voz alta as questões e
respostas, de modo a que todos saibam o que foi feito pelos colegas. À medida
que a compreensão do texto vai avançando, as questões formuladas por um aluno
deverão ser respondidas pelos outros. Além dessa exposição oral, o que foi
escrito deverá ser entregue no dia, pois contará como avaliação. Ao contrário
das outras estratégias de pontuação que critiquei antes, parece-me
imprescindível que tais atividades diárias ao longo da disciplina valham no
mínimo cerca de um terço dos pontos do semestre, de modo a criar a
mentalidade de que este processo de engajamento prévio tem um valor real,
substantivo, no processo de aprendizagem. Além disso, deve-se, por uma questão
de princípio, reservar uma parte da carga horária da disciplina (eu diria
talvez 1/4) à leitura do texto e confecção das perguntas e respostas, de modo a
marcar, mais uma vez, o valor a ser dado a essa preparação.
Eu diria que, de forma análoga a como é necessário comprar
uma passagem para viajar, ter um passaporte para entrar em um país, comprar um
tíquete para assistir ao filme, é necessário também um “tíquete” para assistir
aula: ter estudado e refletido sobre o que será exposto. A situação típica: “Eu
não pesquisei nada, não estudei nada, não li nada, e vou assistir uma aula”
deveria ser completamente banida de nosso processo educativo. Além dos
malefícios evidentes da atitude meramente passiva dos alunos, existe ainda um
outro “prejuízo”, mas para o professor. Se o aluno não tem nenhum conhecimento
do texto a ser discutido em sala, quais as chances de ele poder medir, por
exemplo, o quanto a exposição acrescenta ao que o texto clássico diz? Como
poderá avaliar a originalidade da exposição, sua ousadia de propor uma
interpretação nova etc., se não há parâmetro nenhum, nem sequer do próprio
texto-base? Nesse sentido, muito do esforço de preparar uma boa aula, indo além
do que um autor clássico disse e do que os comentadores já explicitaram, fica
perdido.
Na medida em que as perguntas e respostas dos alunos vão se
enriquecendo com as exposições do texto e das leituras próprias, tanto menos se
tornam necessários esses famigerados seminários em grupo ou individuais, pois
as participações podem se dar no registro de apresentação/debate dos conteúdos,
pois toda a turma já está a par dos elementos conceituais, podendo interferir
de forma criativa ao longo dos trabalhos. Assim, não apenas não sacrificamos o
que há de significativo na exposição por parte do professor, quanto a
enriquecemos com as intervenções dos alunos, as quais podem se dar de forma
muito mais bem informada e com frequência proporcional ao quanto cada
perspectiva dos alunos se amadurece no decorrer do curso.
Se você gostou dessa postagem,
compartilhe em seu mural no Facebook.