O trágico, na Grécia antiga, significou o entrelaçamento
dialético, vertiginosamente não-resolvido, entre os planos da totalidade
cósmica, do movimento de instauração da experiência da comunidade
político-democrática e da afirmação da individualidade ao se unificar ao redor
do eu. Nessa confluência de realidades distintas, cada uma impõe sua própria
verdade, ao mesmo tempo em que se dá a conhecer como arbitrária, insuficiente,
buscando sempre uma dobra sobre si mesma para se afirmar. O teatro trágico
grego representa a tentativa de exprimir esse modus vivendi multifacetado
por meio da força da ambiguidade das palavras, do canto, das imagens, do
pensamento, da ação. Nenhuma outra figura cultural seria capaz de fazer justiça
à intuição íntima do quanto é, ao mesmo
tempo, necessário e impossível traduzir num plano da consciência a dor
ínsita na condição humana de um ser calcado em contradições insolúveis. — O
objetivo deste texto é tomar as tragédias Édipo-rei,
de Sófocles, e Íon, de Eurípides,
como testemunhas de dois momentos distintos do percurso grego antigo na
plasmação poética da consciência trágica.
Várias são as noções centrais que permeiam essas duas peças,
mas vamos nos limitar a três delas: justiça, poder e conhecimento de si. Em ambas
as tragédias, o núcleo estético gravita ao redor da ideia de uma justiça
cósmica em contraste com o desejo de instauração do direito humano, de tal
forma que os protagonistas situam-se de forma nuclear nos destinos da polis,
porque são seres poderosos, capazes de ditar os caminhos de todos os cidadãos,
mas tudo isso somente pode ocorrer, somente se firma em sua legitimidade
operante em virtude do discernimento esclarecido de quem sou eu, de quem me
gerou, de qual meu percurso. Este último aspecto não é efêmero ou marginal,
pois significa uma base literária concreta como via possível de conscientização
do trágico como movimento, como produção de sentido a ser agarrado pelas mãos
mágicas do ímpeto poético, resgatado da noite sombria e eterna do seio da
natureza em sua repetição tão infinita quanto o apetite de Cronos por seus
filhos.
Em Édipo-rei, como
sabemos, o personagem central faz convergir, em todas as dimensões de seu ser —
desde o fato de que era manco até sua sapiência e arrogância —, o caráter
heteróclito da figuração trágica da existência. Sua inteligência em deslindar o
enigma da esfinge é proporcional à petulância de mandar matar um vidente cego e
ancião, como proporcional também à virulência com que cega a si mesmo e
pretendia assassinar sua própria mãe. O furor de suas atitudes e a eloquência
de seu intelecto configuram a inquietude essencialmente humana como o preço do
desejo ímpio de se livrar de um sentido preestabelecido pelo útero da natureza.
Toda a démarche do processo jurídico
de investigação do criminoso converge no aprofundamento de uma desgraça, cujo
sentido dramático consistirá precisamente na única via de afirmação de si mesmo
como humano: a assunção da culpa como filete esganiçado de esperança de ser si
mesmo. Tal como disse Nietzsche, o trágico não existe sem o apolíneo, sem a
sedução do vínculo unitário de tudo ao discernimento luminoso do ser das coisas
e de si mesmo. Em Édipo-rei, porém, o
apolíneo parece trabalhar também a serviço do esfacelamento dionisíaco,
constituindo um nó dialético, em princípio inexpugnável, pois o saber confere
ao protagonista uma salvação desgraçada, ou uma desgraça humanizada, o que dá
no mesmo, na construção de um si mesmo que somente se impõe devido à dor que é
sentida na assunção de um crime sem autoria.
Nessa vertigem de tentar escavar uma via estreita e
pedregosa de contingência no meio de um pântano de forças cósmico-coletivas
monolíticas e absolutas, a plasmação poética significa precisamente a tentativa
de mostrar que tanto a positividade do desejo instaurador de leis quanto o destino
férreo traçado pelo deus são iníquos, contraditórios em sua prepotência de
doação de sentido inequívoco. Somente a transcendência poético-literária faz
transitar na composição jubilosa das imagens de dor, de percurso e de desejo de
salvação a única via possível de liberdade, a saber: da consciência do quão
insuficiente significa a legitimidade do existir. Uma vez despido da aparência
de fusão uterina com a raiz ontológica, ou seja, sagrada, de tudo, mas ainda
não nutrido pela ilusão de unidade consciente de si consigo mesmo, o ser humano
se apercebe como um eterno estrangeiro no espaço traçado por sua própria
consciência, desistido do deus e bajulado eternamente pelo brilho ofuscante de
seu saber.
De nada serve a consciência da legitimidade da pólis, se a
ela escapa a solidez que a natureza desde sempre forneceu como base do sentido
da vida. É preciso, pois, eternamente negociar as bases de um contrato, que o
tempo todo precisa ser reformado, e o trágico demonstra a consciência grega de
que toda lei é uma astúcia para fazer valer os direitos de cidadania para
aquele que, sabendo-se como usurpador, quer se dar a conhecer como um legítimo
filho da ordem natural do ser. O desejo final de Édipo de ser reconhecido como
culpado pelo que fez demonstra um elevadíssimo grau de tensionamento dessa
cisão entre a natureza sobrenatural e a pólis estrangeira. Somente o
rebaixamento do valor como criminoso é capaz de elevar um desterrado à condição
de autóctone, ou seja, à posição de legítimo possuidor da consciência de seu
desejo.
Quando chegamos a Eurípides, a democracia já percorreu o
caminho da suficiente partição dos territórios de legitimidade das esferas
divina, natural e humana, sendo esta última também repartida entre opinião
individual e coletiva. O mito de um povo autóctone não é mais a única figura a
ser traduzida poeticamente para dar conta da consciência da precariedade do
sentido, pois já possui uma finalidade política bem estabelecida: legitimar o
poderio bélico e político ateniense. Nesse momento, o conhecimento de si do
indivíduo se dá sobre o influxo do desejo de afirmação de si de um povo, existe
como figura poética para enfatizar a legitimidade da violência apropriativa do
outro. Em vez de o percurso da auto-gnose exprimir o caráter insolúvel da contradição
que anima o existir humano como confluência da Natureza abissal e do Estado
solar, ele agora quer demarcar um mito fundador que confere suficiente solidez
a um projeto político que se pretende perpetuar. Se em Édipo-rei o apolíneo parece trair si mesmo colocando-se a serviço
do aprofundamento doloroso do dionisíaco na figura da culpa, agora ele reina
absoluto. A peça de Eurípides começa e termina dentro do templo de Apolo,
demonstrando que o percurso noturno da dúvida entre o início, que glorifica o deus,
e o término, que é glorificado pela deusa, será enquadrado pela luminosidade
solar da certeza de si.
Em Édipo-rei, todo
deslocamento horizontal parece transformar-se, a qualquer momento, em mais uma
via de tensionamento vertical entre a luminosidade do saber e da lei, e o
abismo sombrio da natureza sagrada. Labirinto é o que temos, mas permeado não
apenas de falsas saídas, mas de um pseudo-solo, carente da certeza de que não
atuamos apenas como fantoches da vontade divina. No Íon, de forma substancialmente distinta, temos uma narrativa
linear, distendida entre dois polos luminosos, que conferem sentido a toda a
negatividade intermediária. Se no Édipo
a arrogância humana perante os deuses é ao mesmo tempo punida e identificada à
única via possível de afirmação de si através de sua figuração poética, agora
temos um deus que mente de forma ridícula no início da peça e garante a
felicidade no final. Se no Édipo a
ilusão de ser um rei legítimo é aniquilada pela crueza de saber um criminoso,
no Íon a ilusão do rei em ser pai é
produzida pelo deus e reafirmada como uma bênção, não só individual, quanto
coletiva.
O espaço democrático e jurídico na positividade da pólis
será precisamente o que é plasmado na peça de Eurípides: uma eterna negociação
de aparências talhada para caber nos trilhos da racionalidade. A ratio é,
propriamente, a capacidade de dividir, de particionar, sendo a base fundamental
para a percepção jurídica da legitimidade. Em um processo jurídico, cada uma
das partes será precisamente isso: uma parte de uma totalidade cujo sentido já
não mais cabe questionar se está preestabelecido: até os deuses mentem
politicamente, advogando por sua necessidade societária. Tudo é válido, tudo é
admissível, tudo possui sua cota de legitimidade, desde que se insira de forma
suficientemente bem argumentada, racionalizada, no projeto de robustez da
unidade do corpo político. Para este, a inteireza do indivíduo já não é mais um
problema, ou melhor, será um dos
problemas a serem inseridos nesta grande narrativa da — e que é a — pólis.
Tudo isso, porém, não significa dizer que a tragédia de
Eurípides seja apenas um discurso fúnebre sobre o trágico, mas sim a elevação à
consciência de si de que o trágico como tal não é possível. Ele somente tem sua
legitimidade de existência como processo assegurada no plano da duplicidade
imagético-literária e estética. Se, como disse Nietzsche, a tragédia morreu de
forma trágica nas mãos de Eurípedes, em certa medida este replica no âmbito da
discursividade democrático-jurídica a consciência poética de impossibilidade de
um sentido, ou seja, é como se fôssemos persuadidos de que o poder da palavra
poética de instaurar uma aparência de sentido necessita, ela mesma, de uma
outra imagem, uma nova tradução. No limite, o que resta são apenas conflitos
entre formas de traduzir nossa precariedade no mundo.
(Este texto foi apresentado no VI Congresso de Psicanálise,
Direito e Literatura, na UFMG, em 18/09/2015.)