A operação “Mãos limpas” na Itália dos anos 90 e a “Lava
jato” apontam para um novo paradigma de equacionamento da esfera da
representativdade e da luta política, especialmente naqueles países onde há
concentração maciça dos meios de comunicação em massa, como é o caso do Brasil.
Tendo elogiado enfaticamente a atuação do judiciário italiano, o juiz Sérgio
Moro, em um artigo já bastante comentado de 2004, nos indica o quanto considera
legítima a atuação da imprensa como meio de corrigir a impunidade dos crimes de
corrupção nos contratos públicos com grandes empreiteiras, bancos e demais
organizações: está em jogo a aliança do judiciário com os meios de comunicação
em massa contra o âmbito político.
Desde as primeiras reflexões filosóficas sobre política, em
Platão, passando por Jean Jacques Rousseau e chegando aos nossos dias, o âmbito
político foi caracterizado como decadente, como um meio em que o progresso se
mostra por demais caro, tendo que pagar um preço de correlações espúrias de
interesse, negociatas inconfessáveis, troca de favores absurdamente antiéticas,
imorais e contrárias ao espírito republicano. O senso comum de que “todo
político corrupto” demonstra, entre outras coisas, a sempre presente leitura
moralista das instituições políticas como um espaço completamente permeável e
indefeso ao que há de pior no espírito humano.
Diante deste quadro, que se consolida a cada escândalo
apresentado em quaisquer dos poderes da república, torna-se cada vez mais
desesperançoso imaginar que toda a iniquidade política se resolva em seu
próprio plano, que parece se consumir em um círculo vicioso infinitamente
renovado. Esta situação se perpetua mesmo que incluamos o poder judiciário como
garantidor do cumprimento das leis, posto que este se mostra claramente
influenciável pelo poder político e econômico. O que há de “revolucionariamente
novo” na Mãos limpas e na Lava jato, e que promete romper a inércia que
autorreproduz o vício da corrupção, é a entrada em jogo de um novo agente, que
se mostra acima das vicissitudes dos interesses escusos, por um lado, e bem
mais potente do que o mecanismo lento e imperfeito do judiciário, marcado por
graus de recursividade e de protelação absurdamente irritantes ao olhar do
cidadão.
Embora Sérgio Moro aponte a necessidade de cuidado com aquilo
que é repassado para os meios de comunicação de massa relativo aos processos
contra os acusados, sua ênfase é muito clara: em vez do vício circular de uma
corrupção infinita e perpétua, agora temos um círculo virtuoso (ele usa essa
expressão várias vezes no artigo), pois cada confissão extraída por delação,
não apenas premiada, mas coagida pela prisão preventiva, fomenta novas
delações. O quadro geral é, portanto, de aceleração dos mecanismos
condenatórios e punitivos, sob o influxo do catalisador dado pelas manchetes e
matérias na imprensa, movendo a consciência judicativa pública a não apenas
exigir condenação formal, mas como produzindo ela mesma uma sentença por conta
própria, a saber, referente à imagem política de pessoas e partidos.
É fácil perceber que, nessa estratégia, o espaço político
fica como que estrangulado entre o jurídico, que pode ser tomado como uma
espécie de campo infra-político, e os meios de comunicação em massa, algo como
um plano meta-político. O primeiro, regido por leis positivas e movido por
agentes a quem se reputa idoneidade moral para se isentarem de interesses
políticos, fornece um solo de credibilidade que, por mais que possamos
desacreditar, somos constrangidos a lhe conferir confiabilidade, dentre outros
motivos, pela realidade pragmática de não haver outra instância a se recorrer.
O segundo, da imprensa, arrogando-se, em sua esmagadora maioria, como imparcial
e cumpridor dos propósitos de informar e apresentar todas as facetas do real,
fornece o outro lado de uma moeda capaz de atuar como força contrária ao
movimento degenerativo corruptor e corrompido da política.
Na relação entre patrões e trabalhadores, ou seja, entre
capital e trabalho, o espaço da representatividade política é de crucial
importância para se equilibrar, pelo menos de forma mínima, o jogo de forças da
luta de classes. Todo o conjunto das leis trabalhistas, por exemplo, somente
foi capaz de instituir direitos arduamente alcançados pela classe trabalhadora
em virtude da pressão sobre os agentes políticos. Na medida em que essa esfera
de representatividade é engolida e massacrada por aquele torniquete
jurídico-mediático, fica muito claro o quanto as políticas progressistas e
favoráveis aos trabalhadores perderão um campo dificilmente recuperável. Na
medida em que houver espaço e força política, é de crucial importância constituírem-se
meios de democratização do controle da atividade judiciária e também dos meios
de comunicação em massa. Caso contrário, o horizonte mais do que provável é que
o âmbito político somente dê guarida àquelas forças reacionárias que não apenas
não serão combatidas pela atividade de setores reacionários no âmbito jurídico,
quanto ainda serão favorecidas pelas empresas de comunicação em massa, tal como
já são em sua maior parte.