Vladimir Safatle escreveu em sua coluna da Folha de São Paulo
(22/04/16): “... uma das maiores ilusões da Nova República foi acreditar que a
redemocratização brasileira exigia de seus principais atores políticos a
capacidade de tecer alianças com os setores mais arcaicos da sociedade”. Ao
mesmo tempo, porém, ele tem escrito várias vezes a favor da necessidade de uma
repactuação política no Brasil.
Bom, o que é um pacto senão tecer alianças, fazer acordos,
ceder e cobrar, transigir etc.? O que Lula fez em seus dois mandatos na
presidência foi precisamente costurar um grande pacto nacional que propiciou
diversas conquistas sociais. É preciso considerar que estas não foram maiores
porque o ponto de equilíbrio no pacto entre um gari e um banqueiro está,
obviamente, muito mais próximo deste último. “Os setores mais arcaicos da
sociedade” são aqueles que possuem inevitavelmente maior poder de fogo,
conseguindo, assim, impor os termos de qualquer “novo pacto” que se queira
realizar agora.
A esquerda brasileira, infelizmente, é por demais utópica.
Ela pensa que, em algum momento, é possível zerar a marcha da história e
recomeçar tudo em termos muito mais vantajosos aos trabalhadores. O próprio
Safatle é favorável a eleições gerais como uma espécie de mini-refundação da república,
esquecendo que as pessoas que irão votar são as mesmas de antes, e agora
nutridas de maior resignação e mais desiludidas, o que faz com que os votos de
evangélicos, que sempre são dados com fé, sejam mais significativos do que na
última eleição.
Ao que tudo indica, uma parte significativa de nossa esquerda
ainda sonha em chegar ao poder destruindo/destituindo todas as camadas
econômicas e políticas mais poderosas, seja por uma revolução comunista, seja
pela vontade majoritária do povo, em um movimento auto-gestado. Essa atitude,
de um utopismo impressionante, implica em ações como temos visto de
intelectuais e políticos como Safatle e Luciana Genro, que combatem de forma
feroz e ácida o governo Dilma, colaborando para minar a governabilidade, e que,
em seguida, fazem propaganda apaixonada de um novo pacto, como se este pudesse
ser feito com atores diferentes e com princípios ditados em sua maioria pela e
para as classes baixas.
Na verdade, muito do processo de desestabilização política
que vivemos se deveu exatamente à tentativa “heróica” de Dilma em impor aos
poderosos do capital financeiro cláusulas mais propícias no pacto que havia
sido gestado por Lula. Ela forçou a queda drástica da taxa de juros cobrada no
país, empregando a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil como agentes
financeiros capazes de determinar o que o mercado privado de capitais passou a
cobrar pelos empréstimos às pessoas físicas e jurídicas. Muitos analistas dizem
que a elite econômica se assustou terrivelmente com essa atitude, passando a
trabalhar sistematicamente contra o governo. Em outras palavras, Dilma tentou
fazer precisamente o que essa esquerda pretende: um novo pacto bem mais
vantajoso para as classes menos favorecidas. O grande, enorme, problema está no
fato de que o equilíbrio alcançado por Lula no cenário político e econômico
brasileiro ainda era muito instável, e tornou-se cada vez mais.
A ironia em todo este percurso reside no fato de que esses
atores políticos de esquerda contribuíram, em sua medida, para desestabilizar
este quadro mais ainda. Em vez de se unir ao redor de um governo popular como o
de Dilma e Lula, de modo a, aumentando sua força, poder impor pactos melhores
que os anteriores, nossa esquerda quer fazer uma espécie de formatação de nosso
HD político, para poder escrever e digitar tudo de novo, como se a mentalidade
política atual do país não fosse fortemente herdeira de senhores de escravos,
coronéis, ditadores, plutocratas, oligarcas e uma legião de admiradores de
fascistas, homofóbicos, racistas, misóginos, fundamentalistas religiosos etc. —
Enquanto anda com a cabeça nas nuvens de uma sociedade nova, reformatada e
repactuada, nossa esquerda dita “autêntica”, tropeça nas rochas de nossa
realidade histórica, ajudando a espalhar o entulho que trava o progresso
possível.