Nosso aparelho jurídico e policial é precário demais. Está
acintosamente sujeito às influências econômicas, políticas e sociais, desde a/o
oficial de justiça, o soldado da PM e detetives da polícia, até a instância
jurídica máxima. Tudo se move no sentido de manter uma ordem não apenas regida
pela paz, mas fundamentalmente pelas relações de poder estabelecidas. Nesse
sentido, toda essa estrutura é essencialmente conservadora, nos vários sentidos
que a palavra possui, e o político é um deles. Reina uma alergia visceral ao
progresso, por mais que haja, como de fato há, vários membros em todas as
corporações que se distanciem dessa mentalidade. Apesar das exceções, o que
vemos é uma atitude extremamente afim ao desejo de manter tudo tal como é, já
existe, defendendo o status quo, o establishment, a tradição, os valores
consagrados, a verdade já-estabelecida. O mesmo desejo de evitar a ruptura, punir
a violência, combater o crime, manter a paz, primar pela ordenação “normal” do
trânsito, do comércio e dos contratos, é o desejo de combater os ímpetos
contestatórios, frear a manifestação crítica de que esta ordem é, ela mesma, já
violenta, reprimir o grito dos descontentes com o sistema.
No próprio estudo do direito cada estudante é inserida/o no
hábito, eivado de positivismo, de se acomodar à dogmática jurídica, ou seja, de
apenas interpretar a lei, entender seu funcionamento, suas motivações, sua
lógica e sua eficácia, deixando para o último plano — que para muitas/os nem
sequer existe — a consideração do quanto a lei pode ser injusta, ilógica,
violenta, não apenas merecendo, mas demandando um pensamento radicalmente
crítico sobre sua relação com aquilo que mais se quer combater: a injustiça
social.
É em virtude de todo este complexo de coisas que me recuso a
compactuar com as avaliações políticas do que significou, desde a primeira
eleição presidencial de Lula, o combate à corrupção no âmbito jurídico-policial.
Desde o julgamento do assim chamado mensalão do PT até uma liminar cassando a
nomeação de Lula como ministro de Dilma, o que vemos em ação é o caráter
essencialmente conservador da justiça mesclado ao seu ímpeto de defesa da lei,
de tal forma que a defesa da legalidade está implicada visceralmente em uma
totalidade altamente viciada pelo espírito geral das corporações das polícias,
do ministério público e do judiciário. Essa mescla intransponível do “verdadeiro”
e do “falso”, do parcial e do isento, da objetividade e da subjetividade, do
tendencioso e da isenção etc., trazem para o universo jurídico-policial a
qualificação de ideológico em sentido mais próprio, mais profundamente
arraigado, que torna por demais difícil e desesperador realizar uma crítica
convincente aos olhos de milhões de pessoas.
Diante da acusação de parcialidade, porém, sempre estará à
mão dos interessados no sistema a defesa cínica de que “sem justiça nenhuma
nosso sistema social desaparece”, “mesmo que somente os pobres sejam punidos,
se nem eles fossem, tudo seria um caos”. A precariedade e a parcialidade do
aparato judiciário, nesse momento, são defendidas com base na ideia cínica de
que “é o que temos”. Quando é parcial (no sentido de atingir apenas uma parcela
do que deve ser combatido), a justiça não quer só fazer uma parte da justiça:
tem a intenção de estigmatizar essa parte como a sede de um câncer do corpo
político e social; ela quer tratar o que há de ruim nessa porção para poder
matá-la biológica- ou politicamente para dizer que o resto é sadio, que o que
há de ruim no resto do corpo é apenas algo circunstancial e não “sistêmico”. O “pelo
menos” expresso em grande medida pela classe média branca é apenas um bisturi
com que ela quer afirmar seus vícios e sua soberba, extraindo de nosso corpo
coletivo quem sempre foi percebido como um tumor indigesto.
Se somarmos tudo isso ao gigantesco megafone das ações
jurídico-policiais dos últimos anos, ou seja, a Rede Globo e todos os meios de
comunicação que giram ao seu redor, vemos que, bastante ao contrário de
corrigir a precariedade da justiça — como disse o juiz Sérgio Moro —, essa
aliança produziu uma amplificação radical do caráter tendencioso e parcial do
aparato judicial dirigido contra um partido que produziu uma mudança que,
apesar de lenta quando comparada à nossos ideais mais elevados de progresso,
significou uma etapa importante na alteração do status quo, na aquisição
pelas classes baixas de um patamar de cidadania e de participação na riqueza
coletiva que incomodou e ainda incomoda bastante a quem defende não só a ordem,
mas também a manutenção da hierarquia social e a perpetuação dos privilégios.
Por mais que tenha havido atos de corrupção no Partido dos
Trabalhadores, nossa avaliação do significado político disso está
inapelavelmente comprometida por esse cenário iníquo, enviesado, tendencioso e
principalmente ideológico de toda a estrutura jurídica, policial e mediática de
leitura e implementação da lei, com sua determinação punitiva e, de forma
radical, seu modus operandi de explicitação
do que significa “escândalo” ou algo trivial. Não tenho a menor dúvida de que
se outros partidos que ocuparam posições políticas importantes, como PSDB, DEM
e PMDB, fossem investigados com tanta determinação quanto o PT, se eles
tivessem ações ilegais de seus membros expostas com a mesma virulência nos
programas e publicações jornalísticas, eles fatalmente já teriam sido extintos.
Ao contrário disso, porém, não apenas continuam a existir, mas tentam se
colocar como alternativa de ética na política: o cinismo é algo para o qual é
muito difícil conceber limites.